Décio Freitas, intelectual meridional

Décio Freitas, intelectual meridional

Caderno de Sábado homenageia historiador de Zumbi e Palmares

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      Advogado, jornalista e historiador, Décio Freitas foi um dos grandes intelectuais gaúchos do seu tempo. Possivelmente o maior. Nunca saía de casa sem uma boa tese para defender nas conversas com os amigos. Era o que os franceses chamam de “causeur”, um artista da palavra, da conversa, do diálogo intelectual e da sustentação oral de ideias. Nascido em Encantado, de origem italiana por parte de mãe, Bergamaschi, Décio foi comunista na juventude, opositor da ditadura militar na idade madura e getulista no final da vida. Tudo isso regado a ceticismo, ironia e vasta cultura. Afinal, ele nada fazia sem estilo, uma marca especial cultivada.

      Como historiador autodidata e brilhante, ajudou a resgatar a figura de Zumbi dos Palmares. Pesquisador de arquivos, publicou grandes livros como Palmares - A Guerra dos Escravos, Cabanos - Os Guerrilheiros do Imperador, O Escravismo Brasileiro e A Revolução dos Malês. Na sua última fase, praticou uma história do cotidiano muito temperada em livros como O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil e O Maior Crime da Terra. Foi colunista de jornais como a Folha de S. Paulo. Décio Freitas tinha uma visão nítida sobre o Brasil. Para ele, a escravidão continuava a pesar sobre o nosso presente. Éramos e somos o produto dessa infâmia maior.

      Salto para o pessoal. Fui amigo de Décio Freitas. Convivi com ele ao longo dos últimos 25 anos da sua vida. Em certa época, ele me telefonava todas as manhãs para longas conversas. Quando morei em Paris, ele me fazia visitas de um mês. Hospedava-se num hotel próximo e passava quase que diariamente para discussões e teses. Adorava Honoré de Balzac, Émile Zola, Alexandre Dumas e o gênio dos romances policiais Georges Simenon. Décio foi o intelectual cosmopolita na província. Escrevia bem, conhecia as grandes ideias, posicionava-se sobre tudo, cultivava a arte da retórica e sabia argumentar como um advogado de língua afiada. Nada devia aos grandes intelectuais do centro do país. Provocava polêmica, inveja e confrontos.

      Recebi grandes lições de Décio Freitas. Ele me ensinou a sobreviver no meio jornalístico. Um dia, sem mais nem menos, me disse: “Pesquisa a história do povo. Essa é a que vale. O resto é narrativa de vencedor”. Noutro dia, disparou: “Os negros é que fizeram este país”. Numa manhã, ligou e disse: “Deve-se bater mais nas instituições e menos nas pessoas”. Quando me espatifei, ficou do meu lado, não necessariamente me poupando de críticas. Nem sempre concordávamos. Tivemos ótimas brigas. Durante anos, insistiu para que eu escrevesse sobre a vida de Getúlio Vargas, que considerava o mais completo e rico personagem da história brasileira.

Figura brilhante – Como todo intelectual, Décio Freitas acertava e errava, pois ousava pensar e projetar cenários. Fazia previsões que podiam não se confirmar. Mas fundamentalmente tinha um norte pertinente: o peso da escravidão na sociedade brasileira. Poucas vezes, vi um homem tão apaixonado pela história de um país como Décio Freitas pela do Brasil. Na época em que ele me visitava em Paris eu torcia o nariz para os livros de Simenon. Achava que era entretenimento barato. Décio ria. Garantia que quando eu fosse mais velho e menos pretensioso, entenderia a literatura profundamente verdadeira do criador do comissário Maigret. Dito e feito.

Nesta edição do Caderno de Sábado, intelectuais que conviveram com ele relembram o homem, o historiador, o polemista, o pensador, o pesquisador, o contador de histórias, o personagem completo em cena. São textos de Sergius Gonzaga, Carlos Jorge Appel, Luís Osvaldo Leite, Mário Maestri, Flávio Tavares e de Adriano Viaro, estudioso da obra do Décio, pois o homem deixou obra. Num dos textos de “A comédia brasileira”, Décio refletiu sobre uma “utopia para a esquerda”. Escreveu assim: “O anseio de progresso e justiça social só pode hoje se traduzir no desenvolvimento do capitalismo brasileiro. As sociedades do capitalismo desenvolvido, embora nada tenham de paradisíaco, como pretendem seus arautos, aproximam-se mais do ideal de justiça social e liberdade individual das concepções socialistas do que jamais estiveram as sociedades do socialismo real”.

Sem medo das reações que provocava, ou até gostando dos entreveros, falando dos desafios da esquerda ao longo da ditadura de 1964, especialmente a partir de 1964, alfinetava as ciências sociais com sua obsessão pelo marxismo: “O marxismo ainda reinava nas academias, mas sua incapacidade de dar conta das mudanças que ocorriam no mundo e no Brasil, transformara-o numa teoria sem vida”. Depois da queda do muro de Berlim, a esquerda, para ele, devia buscar a “utopia possível”, conduzir o “Terceiro Mundo” à desenvolvimento, ainda que ele duvidasse da capacidade de se chegar a “Primeiro Mundo”. Outro tema que o obcecava era a “decadência política gaúcha” e o “desfalecido orgulho” do Rio Grande do Sul.

Décio Freitas feria muitas teses sobre o Brasil atual. O que diria sobre esquerda e direita neste momento de tanta polarização e ódio?


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