Da Argentina ao Brasil no seco

Da Argentina ao Brasil no seco

Dois países em crise

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Sempre que passeio em Palermo, em Buenos Aires, espio em certas frestas para tentar enxergar o fantasma de Borges. Fazia tempo que não me dava esse luxo. Andei ocupado demais tentando resolver uma questão medieval: quem mente mais: políticos ou fanáticos de redes sociais? Os portenhos continuam chamando a praça Cortázar de Serrano. Não importa. As placas estão lá para demonstrar a força dos imaginários. Um amigo, outro dia, insistiu comigo: “Explica o que é imaginário em uma frase curta”.

– Um excedente de significado.

– Que m..eleca é essa?

– Um plus de sentido que faz o real ganhar outra dimensão.

      Ele arregalou os olhos. Era papo-cabeça demais para uma terça-feira. Então eu forcei a barra. Resolvi apelar para os exemplos mais curtos. É sabido que a melhor forma de convencimento é aquela que finge desistir.

– Que achas da Florida?

– A Florida ou a Flórida?

– A Florida, de Buenos Aires.

– Uma loucura.

– Uma rua da Praia mais movimentada.

– Não tem comparação.

      Quando alguém diz que não há comparação, já comparou. Não há comparação entre Pelé e Jael. Como não? São jogadores de futebol. O meu amigo falou o que eu esperava. Faltava conduzi-lo ao conceito que negava.

– São duas ruas.

– Muito diferentes.

– Dois calçadões.

– Não simplifica.

– Duas ruas comerciais.

– A Florida é muito mais do que isso.

– Mais o quê?

– Uma atmosfera, um ambiente, uma efervescência, uma magia.

– Aí está.

– O quê?

– O excedente de significação. O imaginário.

– Mas isso é real.

– Pois é. Todo imaginário é real. Todo real é imaginário.

      Palermo tem mais excedente de significação para mim do que a Florida. Foi lá que um portenho me explicou a singularidade argentina:

– Uns precisam encontrar um meio de impedir Cristina Kirchner de concorrer, ou ela ganha. Talvez tenham de prendê-la. Outros, mesmo tendo horror de Macri, seriam capazes de reelegê-lo por medo de Cristina. Por enquanto, ela jura que não será candidata. Melhor não fazer muito barulho.

Num dos seus contos mais famosos, Borges anotou: “Ninguém ignora que o Sul começa do outro lado da Rivadavia”. Foi uma revelação para mim da qual nunca me refiz: eu achava que era depois da ponte do Guaíba.

*

Tivemos de ir para o aeroporto mais cedo. Buenos Aires seria tomada por manifestações contra o governo. Chegamos ao Brasil em meio à divulgação do projeto cruel de reforma da Previdência de Paulo Guedes. País parado? País em férias. Aposentadoria só depois do carnaval.

 


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