Da pantalona à democracia

Da pantalona à democracia

Imagens de outros tempos

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      O fanático só vê fanatismo nos outros. O moralista só enxerga imoralidade no comportamento alheio. Eu já fui fanático e moralista: usei pantalona. Achava absurdo que nem todos tivessem o mesmo gosto. Era jovem, adolescente, usava uma pantalona azul que varria o chão por onde eu passava. Para quem possa não saber, embora isso me pareça inaceitável, pantalonas eram calças também chamadas de boca-de-sino. Quanto mais largas na parte de baixo, melhor. Era um desperdício de fazenda inacreditável. Dava para se enredar nas calças e até cair.

      A pantalona foi um imaginário dos anos 1970. Quanto mais apertado o regime político, mais larga a boca das calças. Nesta minha fase teórica, direi que há relação entre tamanhos das roupas e ideologia. A pantalona existiu durante as ditaduras. Quando a democracia voltou a boca das calças passou a ser mais estreita, voltando ao costumeiro. Em compensação, a partir da década de noventa, os calções, que passaram definitivamente a ser chamados de shorts, cresceram. Os calções dos jogadores de futebol eram mínimos, econômicos, apenas cobrindo as vergonhas dos atletas. Hoje, são compridos, largos (exceto os do goleiro Paulo Vitor, do Grêmio, que prefere um short colante). Por que a boca das calças encolheu e os calções encompridaram? Terá o tecido das vastas bocas de calça sido transferido para os longos calções?

      Sempre me pergunto com uma curiosidade insaciável e nenhuma resposta precisa: em que momento exato os calções espicharam? Em que instante os narradores de futebol passaram a chamar os descontos de acréscimos ao final de cada tempo de jogo? Em que dia e hora entendemos que o futuro depende do presente? Quando foi que acordamos para o fato de que somos um país racista? Ou não acordamos ainda? Opa! Misturei as coisas. De onde me vem essa obsessão por temas sensíveis? A pantalona marcou a minha personalidade. Assim como calção curto. Até hoje me sinto estranho com esses calções que vão até os joelhos. Além da sensação de estar desperdiçando pano, fico também com a impressão de ter perdido alguma coisa, um ponto de ruptura, uma metamorfose.

      Só quem usou pantalona e camisa cacharrel sabe o que é enfrentar o mundo corajosamente. Havia disputa entre os jovens, de cabelos longos, pela boca mais larga da calça e pelas cores mais vibrantes. O tamanho da boca da calça definia uma personalidade, uma atitude, uma maneira de estar no mundo. Naquela época de gigantesca polarização, o nosso mundo dividia-se entre os que usavam pantalona e os que não ousavam fazer isso e, portanto, apoiavam o regime, ainda que jamais falassem de política, o que nos parecia uma prova de posicionamento político. A pantalona, assim como os cabelos compridos, era uma visão de mundo, uma ideologia, um imaginário, uma bandeira, um manifesto.

      Não é a primeira vez que escrevo sobre a pantalona. Deveria também escrever sobre a camisa volta ao mundo. As coisas tinham nome. Nem sempre se dava nome aos bois. Havia bois de piranha. Morria-se pelo que se dizia e pelo que se vestia. Quando usei minha última pantalona?

A pantalona se foi. Os milicos voltaram com seus manifestos e suas ameaças.


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