De Baudelaire ao gogó

De Baudelaire ao gogó

Tecnologia, arte e comunicação

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      Charles Baudelaire, o grande poeta moderno, nasceu em 9 de abril de 1821, há 200 anos. Poucos encarnaram com ele o espírito da modernidade. E poucas tecnologias mudaram tanto o jornalismo quanto o telégrafo. A fartura de informações afetou o modelo baseado no chamado nariz de cera: introdução longa, imagens fartas, conteúdo raso. Surgiria o estilo telegráfico. Um golpe duro na retórica bacharelesca dos notáveis de cada cidade. Até a poesia gongórica sofreu na medida em que se foi perdendo o gosto pelas metáforas condoreiras, com a permissão dos puristas para os saltos no tempo e no espaço. A tecnologia muda a gente independentemente do uso que cada um faça dela. A Bossa Nova não teria sido possível sem bons microfones. Os amplificadores e caixas de som acabaram com a necessidade de gogós poderosos. Cantores como Vicente Celestino, Francisco Alves, Nelson Gonçalves e tantos outros, com suas belas vozes, perderam terreno, geração após geração sendo desprezados pelas novas ondas e estilos.

      O último dos vozeirões foi levado pela Covid-19: Aguinaldo Timóteo. Na adolescência, cheguei a gostar muito de Evaldo Braga. Nunca tive preconceitos. Gostava de vozeirões e de vozinhas. O rádio foi um dos últimos baluartes dos vozeirões. A qualidade crescente do som e a mudança do imaginário acabaram por triunfar sobre aquelas lindas vozes, algumas tão graves que pareciam narrar velório. A política, na época dos comícios no gogó, também precisava de vozes fortes, gargantas poderosas e imagens que colassem na mente dos eleitores. Nada ficava gravado. Ganhava-se voto no cabresto e na enrolação. A televisão acabou com a discurseira. Três minutos de fala na telinha parecem uma eternidade. A tecnologia matou uma época oral.

      Os elitistas dizem que Aguinaldo Timóteo era brega. Somos todos um tanto bregas. Cada um no seu estilo. João Dória Júnior, governador de São Paulo, é o burguês brega com seus blusões sobre os ombros. O cantor Fagner sempre teve uma breguice tolerável (por mim) com seus ganidos dolorosos. Os sertanejos universitários ganham dinheiro com uma breguice calculada. Roberto Carlos, que adoro, cultua a sua breguice como um selo de qualidade que se eterniza. A Academia Brasileira de Letras é um panteão da breguice. Os programas de auditório são cases de breguice bem-sucedida. Os vozeirões tornaram-se tão bregas quanto o dito futebol à moda antiga. Nada mais brega, porém, do que a modernidade vira-latas com autoestima elevada.

      Ouso dizer: sem breguice a vida seria muito chata. Todo aquele que chora por amor é brega. Negue a primeira lágrima quem nunca se embriagou de uísque com guaraná ao som de Elis Regina em ritmo de choradeira. Os piores livros são aqueles que por sofisticação eliminam qualquer sentimento. Fica só o que Machado de Assis chamava de “estilo asmático”: “O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim”. Modernos gozam. Muita gente boa, como lembrou o colunista Artur Xexéo, curtia o repertório de Timóteo nas vozes da ótima Maria Bethânia e outros aceitos pelo bom gosto sem povo nem vibrações inalcançáveis.

Doce ecletismo – Aguinaldo Timóteo cantava muito. O fim da era dos vozeirões democratizou muita coisa. Eu virei radialista. Muita gente vencedora passou a ganhar a vida como cantor. Eu poderia citar alguns nomes, mas não o farei para não estragar o final de semana dos mais incontidos. Além disso, adoro certos intérpretes que sussurram, desafinam e cantam doces breguices maravilhosas. O Brasil é brega. Eu sou brega. O amor é brega. Só não é brega quem nunca chutou o balde.

      Cheguei a uma conclusão quase científica: um romance só será lido se tiver, ao menos, 25% de breguice. Sem isso o leitor não se dá o trabalho de debulhar mais de duzentas páginas de sabedoria clean. As novelas fazem sucesso por terem em torno de 80%. As séries da Netfliz disfarçam a breguice, mas não a negam. O melhor do Brasil pode ser considerado brega na visão moderna: feijoada, samba e futebol. O novo brega adora a breguice gourmetizada. É o cara que não se acha brega. Não sabe que é apenas o renovador do gênero. A suprema breguice é se mudar para Miami, sonegar impostos e furar fila de vacina. Mas não é de duvidar que ir a Paris todo ano seja muito brega. Enfim, quando tudo é brega, nada é brega e cada um curte o que bem entender, salvo pelo fato de que existem os fiscais implacáveis do gosto alheio.

      Adolescente trágico eu lia Álvares de Azevedo e ouvia Evaldo Braga cantar “Noite alta, céu risonho/A quietude é quase um sonho/O luar cai sobre a mata/qual uma chuva de prata/de raríssimo esplendor/Só tu dormes, não escutas/o teu cantor revelando à lua airosa/a história dolorosa desse amor”. Depois, ouvia na voz de Nelson Gonçalves. Só me acalmava vendo o Internacional ganhar de alguém. Assim formei o meu imaginário. Até que Belchior fez folia em minha vida e eu me descobri na estrada sem dinheiro nem bolso nem amigos importantes. Numa parada, ouvi Aguinaldo Timóteo cantar “Meu grito” e gostei. Gostava de tudo. Um professor me disse: “Para de gostar de tudo ou ninguém vai gostar de ti”. Não consegui. Sou eclético. Gostar acima de tudo, sem limites, só da poesia do genial Charles Baudelaire.


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