De carona: memórias de guri

De carona: memórias de guri

Crônica de uma infância na campanha

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 Estou velho. Voltei a ser menino. Começo a me lembrar de tudo o que vivi e até do que inventei. Memória de velho é como imaginação de criança: fantasia muito. Meu pai era a maior autoridade de Palomas. Chefiava o destacamento militar formado por um homem só: ele mesmo. Exercia o seu poder com altivez. Trabalhava muito perseguindo ladrões de gado. A primeira palavra estranha que ouvi foi abigeato. Quando meu pai falava em abigeato, eu estremecia. Era sinal de tensão e aventura. Meu sonho era ser como ele. Quando me perguntavam o que queria ser quando crescesse, eu respondia antes mesmo de respirar e de sonhar:

– Caçador de abigeatários.

Eu sabia pronunciar essa palavra sem errar. Os mais velhos me pediam para repetir. Eu me prestava cheio de orgulho: cinquenta vezes sem tropeçar. Ganhava balas e pirulitos para me exibir. Meu pai bolou uma fórmula que eu repetia quando todos se reuniam para jogar cartas:

– O abigeato é o crime do abigeatário, que faz do peão um salafrário.

 Era a glória. Até em corridas de cavalo, as carreiras, eu era chamado para exibições antes dos páreos. Por mais recompensas, eu definia abigeato, abigeatário e salafrário. A massa exultava. Apostavam dinheiro que eu erraria na quinta, na vigésima, nalguma vez. Eu era como certos cavalos que nunca perdiam. Um malandro tentou me ensinar a errar propositadamente para não desestimular os apostadores.

Toda sexta-feira, extenuado, meu pai precisava exercer o seu poder máximo. Vinha uma comissão pedir autorização para um baile de galpão. Dançava-se a noite inteira ao som da sanfona do alemão Schultz, chamado de Seu Chutes ou de Mario Zan de Palomas, capaz de tocar oito horas sem fumar, apenas tomando goles de cerveja.

– Não. Nada de baile – dizia meu pai.

      Não queria passar a noite policiando os costumes e as brigas dos bêbados. A comissão recorria. Minha mãe reunia o conselho das esposas. Minha irmã mais velha fazia pressão em nome das amigas. Depois de algumas reuniões, minha mãe cochichava alguma coisa no ouvido do meu pai, que ficava vermelho de raiva. Devia ser uma ameaça terrível.

– Tá bom, vai ter baile, mas só até a meia-noite.

– Até as duas da manhã – avisava minha mãe.

      Amanhecia-se dançando. Dizem que Seu Chutes tocava sempre a mesma música em ritmos diferentes. Nas rodas de mate, discutia-se:

– Se o ritmo é diferente, ainda é a mesma música?

      Havia duas correntes. Uma sustentava que sim, a outra que não. O debate podia varar madrugadas. Chutes não se pronunciava. Não me lembro da voz dele. Acho que era mudo. Palomas tinha 301 habitantes divididos em dois grupos: o dono das terras de um lado; todos nós, do outro. Se não era bem assim, peço desculpas. Foi isso que guardei na minha memória. O estancieiro era dono do único carro do lugar. Uma camionete Ford azul e branca cujo motor ronronava como um gato. A gente espichava o ouvido para ouvi-la de longe. Era tão linda. Às vezes, o dono, de bom humor, parava e nos deixava subir atrás. Ainda me lembro do vento lambendo o meu rosto, jogando meus cabelos compridos para trás, me fazendo apertar meu cachorro contra o peito. Outras vezes, passava direto. Nem sempre parava para a gente descer. Ou era eu que tinha medo de me perder? Uma vez, me joguei na areia e fiquei parecido com um croquete. Dirigir a Ford azul era meu sonho.

      Na Ford Azul, no banco ao lado do motorista, espremido entre meu pai o motorista, fiz minhas duas primeiras grandes viagens, a Rosário do Sul e Quaraí. Vez ou outra, falava-se em algo extraordinário: ir a Santa Maria. Era longe demais. Nos momentos de delírio, surgiam nomes imponentes como Montevidéu e Buenos Aires. O Tupamaro, com seu sotaque uruguaio e sua origem misteriosa, explicava que era muito fácil:

– São 500 quilômetros até Montevidéu. Depois, mais cem até Colônia do Sacramento. Dali, se faz a travessia de barco até Buenos Aires.

– E a Ford azul fica onde? – eu perguntava.

– Vai dentro do barco, ora.

      Era esse “ora” que me deslumbrava. Como poderia a Ford azul caber dentro de um barco? Tupamaro falava barco com naturalidade. O Uruguai me fascinava. Era um mundo infinito de campos ondulantes, de tupamaros e de dois nomes sempre ouvidos no rádio: Nacional e Peñarol. Um nome se elevava como uma lenda: Ghiggia. Meu pai quase chorava:

– Melhor não falar disso!

– Quem tem?

– O maracanaço.

Silenciava. Um dia, levando uma boiada com meu pai, numa dessas tropeadas que me faziam homem e gaúcho, mesmo sem a pilcha, ao longo da linha divisória com o Uruguai, ouvi dele algo que me desconcertou:

– Essas terras assim o Jango ia desapropriar para a reforma agrária?

– Como assim?

– Ia dar para quem não tem nada poder produzir sua comida.

      Os campos estendiam-se a perder de vista. Era uma paz só interrompida por cantos de quero-quero. Lembro, como se fosse agora, de ter enchido os pulmões com os perfumes da primavera e exclamado:

– Mas era bom esse Jango, hein!

      Os cavalos ainda avançaram alguns passos no pasto macio antes de a voz de meu pai se elevar com o tom irônico que lhe era peculiar:

– Eta, guri, vai ser comunista!

 


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