Desceu o pano, subiu a Covid

Desceu o pano, subiu a Covid

Marcas do ano da peste

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      E assim, sem um resto de alegria, terminou o ano de 2020, deixando um rastro de mágoas, de lágrimas e de decepções cultivadas na lembrança solitária. A morte do compositor mexicano Armando Manzanero, rei dos boleros, na última segunda-feira, serve de mote para falar das grandes tristezas deste ano sombrio da pandemia, do medo e da impotência, quando a humanidade se sentiu desamparada e só não se desesperou de vez por contar com a ciência. Manzanero escreveu e cantou esta maravilhosa e melancólica descrição de uma ausência: “Esta tarde vi chover, vi gente correr e não estavas tu”. Para os “sofisticados”, que só amam o obscuro, é brega. Para os ecléticos como eu, poesia pura. Metáfora perfeita de um ano de perdas. A interpretação de Roberto Carlos dessa canção é linda.

O vírus ceifou idosos, adultos na idade da razão e jovens. Nas escolas e universidades, diante dos corredores e dos pátios vazios, seria possível cantar: “Esta tarde vi chover, vi gente correr e não estavas tu”. Nunca ficamos tanto tempo longe dos nossos. Só a tecnologia nos aproximou, deixando sempre entre nós e os nossos a ínfima e intransponível camada de uma tela. Tão perto e tão longe. Quantas pessoas queridas partiram cedo demais? Neste Natal, para quem não ignorou o perigo e quis proteger os seus e os outros, deixando de visitar parentes em distantes ou próximas cidades de origem, também seria possível cantar docemente: “Estar tarde vi chover, vi gente correr e não estavas tu”.

O leitor dirá que estou pesado, depressivo, assustador. É que o mundo continuou a sua marcha insana. Na China, uma jornalista independente, que cobriu o descalabro provocado pela pandemia em Wuhan, onde tudo começou, foi condenada a quatros anos de prisão por ter mostrado a verdade. Nos Estados Unidos, o presidente de extrema direita Donald Trump, tendo tomado uma lavada nas eleições, continua a negar o resultado do pleito e a comprometer a saúde da democracia. Na Venezuela, o regime de Nicolas Maduro ganhou uma eleição observada apenas por parceiros de autoritarismo. No Brasil, Jair Bolsonaro passou o ano desafiando o bom senso, minimizando a Covid-19, vomitando absurdos.

Para quem admira uma boa democracia representativa, com justiça social, liberdade de iniciativa, regras valorizadas e respeito às minorias, uma socialdemocracia escandinava, por exemplo, com líderes discretos, sensatos, responsáveis, ponderados e amparados no conhecimento científico, seria, no caso brasileiro, possível cantar: “Esta tarde vi chover, vi gente correr e não estavas tu”. A boa notícia é que o mais importante mau exemplo, Trump, está fora do jogo de acordo com as regras do jogo: perdeu no voto direto e no colégio eleitoral. Deu pra ti.

Autorretrato de meio século – Quando fiz 50 anos, em 2012, publiquei este poema: “A tábua não tem salvação, sendo apenas pássaro na manhã. A tábua é como uma irmã na correnteza da estação. A gente arruma, afina, refina e cobre de verniz. Nela nada se escreve, muito menos o que se diz. O mundo é tábua, estação, correnteza e manhã. Mas se me perguntam: por que pássaro? Mas se insistem: por que manhã? Mas se persistem: por que correnteza? Mas se debocham: por que mesmo tábua? Faço de conta que não é comigo, tenho 50 anos. Tenho 50 anos e isso me autoriza alguma coisa. São cinco décadas alisando tábuas, ruas, perfis. Tenho 50 anos de idade e a ciência da cidade. Tenho 50 anos de vida e a certeza da descida. Tenho 50 anos de estrada e a sina já bem talhada. Tenho uma mala de lembranças, atalhos, lambanças. Um seguro de vida, fundo de garantia, uma cirurgia.

Tenho 50 anos de viagens, andei de casa até aqui. No começo, tudo se distancia, pensamos estar longe. Depois, tudo se reaproxima e nos descobrimos tão perto. A grande viagem não passou de um salto no incerto. Fazemos as contas dos mesmos quinhentos quilômetros. Houve um tempo, eram como cinco mil, intransponíveis. Hoje, não passam de 50, ali, ali, tão disponíveis. A grande viagem de volta é uma tábua sem inscrição. Apenas a bagagem é diferente, um pouco mais pesada. Tenho 50 anos de idade e uma mala cheia de planos. Planos de aposentadoria, de sabedoria, alegoria. Quero fechar o passado e abrir uma pousada na praia. Quero fechar a praia e abrir um bar do passado. Quero escrever o livro que sonhei aos 20 anos.

Quero apagar o livro que escrevi aos 30 anos. Quero cantar o samba que esqueci no morro. Quero me embalar na rede sem pedir socorro. Tenho 50 anos de idade e alguma leitura. Tenho 50 anos de idade e certa gastura. Andei por aí apagando fogos e acendendo velas. Fiz da vida aquarela, passarela, vias paralelas. Quando parti, uma carta demorava quase um mês. Havia tanto a dizer, tanto a saber, tanto a lembrar. Seis meses longe de casa e era um mundo que mudava. Agora que volto, 30 anos depois, tudo está igual. Mas as mensagens chegam em profusão, muitas por vez. Nada tenho para dizer, saber, talvez lembrar. Tenho 50 anos e toda a memória do que fui. Alguma visão do meu futuro. Tenho 50 anos e toda a memória do escuro. Um sol da meia-noite molhado num daiquiri”. Farei 59.

Temi que cantassem: “Esta tarde vi chover, vi gente correr e não estavas tu”. Que possamos dizer no fim do ano: presente. Em luta contra a tábua dos males: desigualdade, racismo, homofobia e feminícidio.

 

 


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