Diário da quarentena (10): abraços

Diário da quarentena (10): abraços

De volta em casa, subo a ladeira cheio de esperança

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As ideias que me povoam nestes dias são simples como as águas da infância. Quando poderemos novamente nos abraçar e beijar? Quando poderemos sair às ruas em alegres bandos, em manifestações ruidosas, como pássaros refestelados ou crianças dando saltos de pura alegria?

      Por quanto tempo esse vírus nos manterá reféns de sua roleta cruel? Confesso que sonho com estádios de futebol cheios e todos se abraçando na hora do gol. Eu, sempre criticado por abraçar pouco em função de certa timidez, só penso em abraçar a Claudia, os familiares, os amigos, os colegas, o mundo. Quando tudo isto passar, quero me transformar numa pessoa de mais contato físico, de mais proximidade. Na solidão do isolamento tenho sido confortado por centenas de mensagens diárias de pessoas acompanhando passo a passo a minha situação. A vida, todo mundo sabe, nada sem é amor, amizade e família. Quem estava longe se reaproximou. Quem sempre esteve perto, não larga virtualmente da minha mão. Quem gosta de mim me ampara com palavras e figurinhas.

      O tempo escoa lentamente. Sinto a espessura das horas pairando sobre minha angústia. É a primeira vez na vida que perco o apetite pela leitura. Não alcanço a terceira frase. Tudo se esfera. Eu volto a pensar em domingos no parque, em praias lotadas, na vida transbordando por todos os lados, em casais de mãos dadas, em amigos se estreitando em abraços intermináveis. Olho pela janela os morros por cujas encostas apinham-se casas e torço para que breve retorne a pulsação, o vitalismo, a força do cotidiano. A vida é tão curta. Não merecemos perder nenhum minuto. Espero que o árbitro seja generoso nos acréscimos. Não menos de 15 minutos. Queremos sonhar, viver a amar.

      Fujo dos noticiários que inundam a televisão. No imaginário destes dias estranhos, sou novamente o menino de Palomas soltando pandorga. Um marimbondo tão colorido que, iluminado pelo sol, parece um caleidoscópio. Para mim, o caleidoscópio é a melhor metáfora da vida feliz. Quando tudo isso terminar, espero que possamos fazer uma grande caminhada de mãos dadas em favor da vida. E o que o lema de todos nós que estamos atravessando esta tragédia seja realmente “ninguém solta a mão de ninguém”. Num segundo, tudo muda. Até pijama eu tenho agora. Aos 58 anos de idade, fiz minha estreia num hospital brasileiro. Uma vez, na França, fiquei dois dias internado para operar um ouvido. É muito diferente.

      Vida louca, vida que amamos e queremos preservar. Fantásticos são, nestes momentos duros, os profissionais da saúde, médicos, enfermeiros, todos, que trabalho corajoso e bonito. Enfim, que venha novamente o tempo dos abraços, dos beijos, dos apertos de mão e dos caleidoscópios humanos feito vitrais. Cantaremos um hino à normalidade. De volta em casa, depois de quase uma semana internado, abraço a vida e me emociono.


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