Diário da quarentena (9): minha razão de viver

Diário da quarentena (9): minha razão de viver

Releitura do livro de Samuel Wainer.

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      Sempre que posso eu releio “Minha razão de viver”, as memórias gravadas por Samuel Wainer e postas em livro por Augusto Nunes. O coronavírus me fez voltar a essa obra polêmica e inflamada. Wainer foi amigo de três presidentes brasileiros: Getúlio Vargas, JK e Jango. A sua grande aventura começou quando, em 1949, sobrevoando o Rio Grande do Sul para fazer uma reportagem sobre trigo decidiu mudar de pauta e descer em São Borja para ver Getúlio, autoexilado na campanha. Retornou com uma entrevista bombástica – a promessa de Vargas de voltar como líder de massas –, um apelido – Profeta – e um vínculo que, eleito Getúlio, em 1950, resultaria na criação do jornal Última Hora.

      Essa relação desaguaria numa CPI para investigar a origem dos recursos destinados a bancar um jornal getulista. Talvez nunca alguém tenha revelado tanto sobre o modus operandi da imprensa. Num momento difícil, para salvar o seu jornal, Wainer diz: “Fiz horrores para conseguir anúncios, vendi minha alma ao diabo, corrompi-me até a medula”. Segundo ele, era a regra. Assis Chateaubriand, coronel dos Diários Associados, intermediava a liberação de recursos públicos para empreiteiras. Se um gestor público não atendia os pleitos, tomava pau nas páginas dos jornais. Wainer esclarecia: “Feito o acerto, as empreiteiras premiadas presenteavam o emissário com 10% do total da quantia orçada para a obra”. Simples assim. Ressalva: “Sempre que algum negócio me beneficiava, o dinheiro era integralmente aplicado na Última Hora – nunca quis nada para mim. Meus colegas pensavam diferente: eles colocavam nos próprios bolsos as verbas recebidas, jamais cogitavam de aplicá-las nas empresas que dirigiam. Assim enriqueceram muitos barões da imprensa brasileira”. A acumulava primitiva do capital é selvagem.

      Uma afirmação sobressai: “Como já disse nestas memórias, não é possível escrever a história da imprensa brasileira sem dedicar um vasto capítulo aos empreiteiros”. Samuel tornou-se famoso, cortejado, paparicado e perseguido pelos adversários que usavam os mesmos métodos. Ele conta que, certa vez, aceitou a missão de buscar 450 mil dólares – uma fortuna na época –  na Suíça para “manobras políticas”. Só guardou para si numa conta singelos 20 mil dólares. Anos depois, exilado em Paris, afundado em problemas financeiros, confessa que fez chantagem: “Fiz chegar a Jorge Serpa uma ameaça: se não me fosse entregue um milhão de dólares, conforme me havia prometido, eu revelaria todos os detalhes da transação que ele comandara (...) No fim das contas, contentei-me com 90.0000 dólares”. Tráfico de influência era banal.

      No exílio parisiense, Wainer financiou o filme de um visionário grego, “Os pastores da desordem”. Um fracasso. Para divulgar a obra, adotou-se um atalho: “Subornamos alguns críticos e o filme recebeu várias críticas favoráveis”. Best-seller quando publicado, “Minha razão de viver” provocou suspiros de nostalgia dos grandes tempos do jornalismo de combate. Não se perdeu tempo com passagens como esta: “Minha tarefa consistia em, tão logo se encerrasse a concorrência, recolher junto ao empreiteiro premiado a contribuição de praxe. Não aceitávamos cheques. O pagamento vinha em dinheiro vivo”. Como não era para enriquecimento pessoal, Samuel Wainer não via problema ético.

      Era um tempo de duras lutas. Até os posteriormente santificados pecavam. O jornalista Antônio Callado, que se tornaria herói da esquerda durante a ditadura, apesar de ter apoiado a derrubada de João Goulart com artigos infames no Correio da Manhã, sujou com Wainer: “Sofri algumas decepções dolorosas, uma das quais envolvendo o jornalista e escritor Antônio Callado. Sempre considerei Callado uma figura maravilhosa, um homem extremamente decente. Um dia, abro o Correio da Manhã e encontro um artigo, assinado por ele, cujo título era ‘Opção’. Nesse artigo, Callado contava que se sentira obrigado a fazer uma opção entre Carlos Lacerda e Samuel Wainer. Ao refletir sobre as duas figuras, concluíra que, enquanto Carlos se sacrificava pelo Brasil, Wainer nada dera à sua pátria. Sobretudo por isso, optara por Lacerda”. Apelidado de Corvo, Lacerda foi um mestre em infâmias.

      Outra história saborosa diz respeito a Paulo Francis, que terminaria como jornalista de extrema-direita em Nova York. Demitido da Última Hora por se declarar num artigo brizolista e membro de um grupo dos 11, Francis salvou-se graças à intervenção de Magalhães Lins. Wainer comunicou-lhe: “Paulo, você vai voltar porque faço tudo que meu banqueiro mandar”. Se não era o banqueiro, mandava o empreiteiro.


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