Do sargento ao Capitão

Do sargento ao Capitão

Hierarquia da malandragem brasileira

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Em meu livro “Anjos da perdição: futuro e presente na cultura brasileira”, revisitei uma obra-prima da literatura brasileira: “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antônio de Almeida. Mestre Antônio Cândido, o grande crítico literário brasileiro, tudo compreendeu: "O cunho do livro consiste em certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do ‘homem como ele é’, mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e o da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o mal". Alguma novidade?

Leonardo Filho amou Luisinha, a moça burguesa, própria para o casamento, e Vidinha, a paixão livre, debochada e sem obrigações. Dois amores, duas ordens, duas grandezas, dois modos de encarar a existência. O casamento não entusiasmava Leonardo. A ordem é enfadonha. A Ordem ligava à prosperidade, ao progresso e às elites. A Desordem, ao gozo, à festa, ao jeitinho e ao aqui e agora. A Ordem puxava para a promessa, o futuro, a razão e o projeto. A Desordem, para o arquetípico, o irreal, a lenda, o fabulário e a conciliação de contrários.

O major Vidigal prendeu o malandro Leonardo Filho e obrigou-o a sentar praça na milícia. A comadre resolveu obter o perdão para o protegido. Modesta, pediu ajuda a Dona Maria, influente junto ao representante da lei. Esta, hábil, recorreu a uma certa Maria Regalada, dita de vida fácil. Unidas, enfrentaram o bicho-papão, o rosto da Ordem. O major recebeu-as, em casa, envergando a casaca do uniforme, luzindo os botões, e calçando tamancos. Saborosa mistura da Ordem (do público) com a desordem (do doméstico). O poderoso não resistiu à pressão das senhoras.

      Maria Regelada chamou-o de lado e, pelo visto, prometeu-lhe novamente os seus favores, que certas ordens adoram favores de toda ordem. A Ordem mergulhou na Desordem. O major libertou Leonardo e ainda lhe deu o posto de Sargento na milícia.  Sabedoria do cotidiano contra a falsa frieza do institucional. O povo brasileiro, segundo Cândido, nunca teve obsessão pela ordem, uma prerrogativa das elites: "As formas espontâneas atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência". Estaremos num novo tempo? Ou é simulação?

Antônio Cândido, na conclusão de seu brilhante e famoso ensaio, anotou: "Na sua estrutura mais íntima e na visão latente das coisas, elas exprimem a vasta acomodação geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das ideias, das atitudes mais díspares, criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime". O que estamos vivendo agora? A promoção da ordem por um novo caminho ou a dissimulação da velha desordem? O capitão supera o sargento ou o reinventa como a mesma antiga dialética tropical?

O Brasil está vivendo um choque de ordem ou um ajuste, em meio à divisão ideológica, que restabelece a lei dos arranjos da conciliação dos interesses com suas lógicas particulares? Manda o sargento ou o capitão? Na Terra de ninguém da desordem, que finge ser a nova ordem, o capitão indica o filho para uma bocona, mas diz que não é nepotismo. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, o "familismo é próprio dos regimes autoritários". É da malandragem brasileira.

 

 


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