Entrevista com Ailton Krenak

Entrevista com Ailton Krenak

Uma semana da Consciência Negra e da diversidade

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Caderno de Sábado, na Semana da Consciência Negra, faz uma homenagem à diversidade e publica quatro autores negros e uma entrevista com o mais importante intelectual indígena do país: Ailton Krenak.

Entrevista/Aílton Krenak

“Não somos uma nação”

Líder indígena, nascido no vale do Rio Doce, em Minas
Gerais, escritor e ganhador do prêmio Juca Pato 2020, que distingue o intelectual do ano segundo a Associação Brasileira de Escritores, Aílton Krenak, autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo”, participará, em 5 de dezembro, do Festival POA 2020 –­ Exponencialidades para todos, promovido virtual e gratuitamente pelas entidades POA Inquieta e Pacto Alegre. Visto como um dos pensadores mais influentes da atualidade, Krenak não se deslumbra com o sucesso nem faz concessões. Nesta entrevista em dois tempos, ele analisa temas como humanidade, o conceito ocidental de cultura, intelectualidade, etnocentrismo, eurocentrismo, preconceito e (des)colonização.

CS – Lugar de fala tem importância no que tu dizes ou não te afeta?

Krenak – Se a gente entender que o lugar de fala é social, que não é individual, num campo social que sofre prejuízo, vamos entender que esse lugar de fala é plural, não é uma experiência do sujeito singular. Eu aceitaria numa boa esses termos. Mas do jeito que isso está banalizado, fico com um pouco de dificuldade de me encaixar na ideia, da mesma forma que fico com dificuldade de me encaixar na ideia de intelectual ou qualquer coisa desse tipo porque é uma moldura muito determinada pelo tipo de cultura da representação e do entretenimento. É muito focado em personalidades.

CS – A releitura de “Orientalismo”, de Edward Said. No primeiro parágrafo um jornalista francês lamenta a destruição da Beirute de Chateaubriand ou Nerval. Era o oriente europeu. As culturas indígenas brasileiras ainda são olhadas pelos brancos como exóticas?

Krenak – Não tenho dúvidas. A invenção do oriente coincide com a invenção dos índios. Os chamados povos indígenas são uma invenção do ocidente, produto do ciclo de colonização. Assim como um certo oriente vive na cabeça das pessoas, existe também certo mundo selvagem, dos povos indígenas. Encaixar-se nessa perspectiva é, de certa maneira, engajar-se numa perspectiva colonialista do mundo. Contestar essa visão é que o Said faz de uma maneira muito importante, o que de certo modo inaugurou essa discussão sobre a produção de mundos de que o ocidente é próspero: inventar mundo para os outros. Estamos no mesmo pé. Somos uma invenção do ocidente. Se a gente quiser se encaixar é só fazer a reprodução de todo o repertório do ocidente: meritocracia, individualismo, elogio da pessoa, culto à personalidade. Agora, quando alguém tem um entendimento de si que diverge do ocidente, fica sempre como uma coisa marginal.

CS – O Brasil é um país muito racista. Tu sentes esse racismo mesmo sendo uma personalidade tão respeitada como és?

Krenak – De novo. Volto à questão: de onde eu sou. Onde é que eu me entendo. Eu me reconheço onde? Não me reconheço nessa sociedade complexa que é a sociedade brasileira formada por uma pluralidade enorme de culturas e de povos que vieram colonizar esta reunião do mundo, mas qua ainda não conseguiram constituir uma nação. Não tenho dúvida: nós não somos uma nação. Somos uma formação diversa de identidades culturais. Tem gente que se acha alemão, tem gente que se acha árabe, tem gente que se imagina português, tem colônias aqui dentro. São várias colônias. Não tem termos mais adequado para isso. Eu sou de uma colônia, digamos assim, de povos originários daqui. Então é claro que eu me sinto invadido e discriminado o tempo todo.  A coisa do racismo, do preconceito de classe, do preconceito de condição econômica, isso é mais gritante do que aquele da cor da pele. O preconceito que eu sinto não é o que um homem negro experimenta.

Caderno de Sábado – Questão a partir do teu livro. Somos uma humanidade, tem como ser uma humanidade, ainda falta muito para isso?

Aílton Krenak – Os exemplos políticos e climáticos dos últimos meses estão mostrando que essa humanidade é só um sonho. Ela nunca existiu como um fato real em que as pessoas pudessem se implicar. A situação mais dramática é a do Oriente Médio. O mesmo vale para a África. Nada mudou desde a Segunda Guerra Mundial. Esses lugares são palco de destruição tanto do ponto de vista dos estragos à natureza quando da negação da vida aos seres humanos. A África se apresenta permanentemente de mão estendida em situação de flagelo. Na década de 1980, uma grande campanha, “Human Right Now”, com o objetivo de salvar a África. Não se conseguiu salvar a África. Nem o Oriente Médio. Tampouco o Afeganistão. Ou seja, não se salvou ninguém. Como humanidade, estamos perdidos.

CS – O conceito de humanidade é um europeísmo ou um especismo, o homem colocando-se como medida de todas as coisas e de todas as espécies?

Krenak – Começa pelo especismo e depois radicaliza como europeísmo. É uma centralidade do pensamento europeu, do paradigma que vem dos gregos e dos romanos, projetando-se para o resto do mundo, que é colocado como colônia. Temos uma vasta sub-humanidade que pode vir um dia a constituir alguma coisa parecida com esse sonho da humanidade. Esse paradigma europeísta nega as outras vidas. Tanto a humanidade europeia quanto as sub-humanidades projetadas ignoram que existem milhões de outros seres que nos fazem companhia. Alguns deles são muito sutis como um colibri ou uma borboleta. Outros têm a virulência de um covid. Eles estão aí. Não estamos sozinhos neste universo.

CS – Como é ser indígena no Brasil? O preconceito em relação aos indígenas é tão forte quanto o racismo que atinge os negros?

Krenak – Depois que foi concebida uma ideia de racismo estrutural, fica difícil tirar as camadas para ver onde tem racismo em relação aos povos que viveram a experiência da escravidão e aqueles que viveram a experiência da autonomia, os povos originários apelidados de índios. Esse apelido já revela, digamos assim, uma camada de humanidade, que com outras dará uma dimensão da incidência do racismo. No século XVII se discutia se era possível escravizar os índios. Era para ver se os índios tinham alma. Debatia-se para saber se os índios eram gente. Não tem racismo mais escrachado do que colocar em debate se parte do gênero humano tem alma. Ou seriam animais? Passamos por esse scanner. Teríamos alma, mas uma alma selvagem. Eduardo Viveiro de Castro convoca o Padre Vieira, que falava na inconstância da alma selvagem. A alma do europeu seria esculpida em mármore; a do índio, feita de murta. Ela se rebela contra a forma, contra o molde. Essa inconstância da alma selvagem gera a impossibilidade de tornar esse pensamento submisso. O racismo contra indígenas tem como base a negação da existência dessas pessoas enquanto que o racismo sobre os corpos negros tem a ver com a aplicação da força de trabalho e com a ideia de utilidade da vida desses seres produtivos. No meu livro “A vida não é útil” eu toco nessa questão de que a vida deve ter sempre uma utilidade no mundo do trabalho. Ponho em questão se temos mesmo de aceitar de a vida ter utilidade. Podemos perceber a vida como um dom maravilhoso que transcende nossa experiência pessoal. Independentemente de especismo, de sermos gentes, e os outros, coisas, animais, todos experimentamos a vida com a mesma intensidade. A vida é a mesma em mim, em você, numa lagarta, numa borboleta, num dinossauro, num rinoceronte. Os poetas dizem isso. A vida sendo tudo consegue fazer com que a gente suporte a desigualdade, a irrelevância, a total invisibilidade, A vida é mais do que um conjunto de valores amealhados ao longo da história para achar que isso significa ser humano.

CS –  O que é cultura para um Krenak?

Krenak – Eu tenho uma observação sobre esse conceito de cultura, que está subordinado ao pensamento europeu. Outros povos têm observações diversas sobre esse conjunto de valores que nós chamamos de cultura. Para a maioria dos povos originários do continente americano essa ideia de cultura não existe. A ideia de cultura separa campos da experiência da vida para dizer, por exemplo, que existem cultura e natureza. Durante o século XX teve muita produção intelectual tentando dirimir a questão de cultura e natureza. Parecia tão essencial que se não houvesse a separação clara entre cultura e não natureza não se poderia atuar no mundo de maneira competente. Isso é o pensamento europeu. Eu não penso cultura nesses termos. A vida para povos que experimentam uma cosmovisão tem um fazer cultural que não se distingue de qualquer outra experiência sensível. Seria talvez escandaloso dizer que respirar é cultura, fazer um balaio é cultura, mergulhar é cultura, prender fogo é cultura. Tudo é cultura. Mas quando você diz que tudo é cultura, chega naquela discussão do campo da arte: se tudo é arte, nada é arte. Não quero banalizar o debate cultura, mas quero dizer o seguinte: a circunstância desse sujeito coletivo que eu entendo ser participa de vários campos de relação com diferentes tradições e tem essa maravilhosa experiência de coexistir com diferentes cosmovisões. Isso vai muito além da ideia de cultura que o ocidente cultivou e que ainda inspira ideias sobre natureza e meio ambiente, que é tudo que está fora da cultura no ocidente. Em “Ideias para adiar o fim do mundo” tem a história de um pesquisador que chega na terra dos Hopi e quer conversar com uma anciã perto de uma pedra. O intérprete diz: “Ela está conversando com a irmã dela”. O outro responde: “Mas aquilo é uma pedra”. E o camarada: “Qual é o problema?” Para os Hopi, povo nativo do Novo México, é possível uma mulher ter uma irmã que é uma pedra e conversar com ela. Do outro lado da margem do rio aonde eu vivo tem uma montanha, Tatukrak. É uma montanha rochosa. Ela tem humor e personalidade. A gente experimenta em relação a ela a mesma transvisão que permite entender que a experiência da vida não se limita ao ser humano. Ela transcende o humano e pode ser intercomunicada. Uma pessoa humana pode se relacionar com uma montanha, com um rio, com uma floresta, com uma árvore, com um pássaro. Não tem essa divisão que a cultura no ocidente estabelece e para a qual isso vai ser uma confusão, um caos ontológico. Alguém teria entrado em estado de piração e passado a achar que um ser humano pode abraçar uma árvore e comungar com ela. Só que cada vez mais tem gente abraçando árvore e comungando com ela. Como diz Boaventura de Sousa Santos, estamos furando essa linha abissal que separa cultura e natureza.

CS – Quando percebeste que serias um intelectual?

Krenak – Não existe para mim um evento irruptivo dessa consciência. É o mesmo ritmo que me inspirou, na primeira infância, brincando, batendo balaio para pescar, chutando a água para espantar os peixes. É uma esperança sensorial. Não vejo um momento da minha vida em que eu tenha dito: agora eu vou pensar. Sempre vivi numa constelação de seres que pensam mesmo nunca tendo escrito nem sequer o nome. Pensam e são grandes oradores. Aprendi com grandes mestres de oratória que falavam nos terreiros das aldeias Xavante, Krenak, Guarani, Krahô, Yanomami. São meus colegas. Eles não se destacam para o mundo dos brancos como intelectuais. O Davi Kopenawa Yanomami escreveu junto com Bruce Albert um dos livros mais interessantes do final do século XX, “A queda dos céus”, adotado como uma das contribuições mais relevantes para discutir a questão do antropoceno, a grave temática das mudanças climáticas e outras. São novos elementos na constelação de pensadores sobre o mundo, a Terra. Eu convivo com muitos outros sujeitos coletivos com a mesma capacidade de se implicar na reflexão sobre o mundo de antes e de agora, o que me deixa à vontade para não sentir qualquer prejuízo em ser chamado de intelectual. Tampouco vejo vantagem.

CS – Há uma constatação que independe de consequência: o reconhecimento nacional e internacional alcançado como um dos grandes intelectuais brasileiros, aquele que tem uma capacidade de uma leitura iluminadora da vida. Esse reconhecimento não é dado a todo mundo.

Krenak – Nem todo mundo talvez, mas muito mundos têm. Eu não me sinto com essa singularidade. O fato de estar sendo aclamado como intelectual do ano no Brasil e de ter os meus livros publicados na Alemanha, na Itália, na Holanda e na Inglaterra eu acho muito bom, mas não me faz mudar, nem sequer de cadeira. Estou na mesma cadeira. Não mudei. Se eu puder continuar inspirando as pessoas, vou fazer isso do mesmo lugar onde sempre estive. Na verdade, eu não me afeto com isso. Vou passar incólume a esse maravilhoso ano de 2020 em que me acharam como intelectual do ano.

CS – O desenvolvimento sustentável é apenas um mito?

Krenak – O desenvolvimento sustentável é um dispositivo interno ao capitalismo, ao mundo da mercadoria, que trabalha com a natureza, com algo que se exaure. Por isso, foi constituído como uma narrativa para esconder que aquilo que está sendo consumido agora vai acabar. É como se as pessoas fossem mantidas na infância, uma infância da ignorância. Diz-se aos indivíduos que eles podem comer tudo o quiserem e que nunca vai acabar. A sustentabilidade, nesse sentido, é um mito oportunista que serve ao capitalismo. Fora disso não teria sentido algum transferir para a natureza a ideia de sustentabilidade. Carlos Drummond de Andrade passou a vida dizendo que os mineiros estavam comendo as montanhas e que Itabira era só um retrato pendurado na parede. O que ele dizia era o seguinte: comeram a paisagem da minha infância. Como isso é sustentável? Como pode ser sustentável destruir a floresta amazônica ou mata atlântica? O agronegócio é sustentável? O garimpo e a mineração são sustentáveis? No final do século XIX, um político mineiro teria dito: mineração só dá uma safra. Ela pensava no mundo agrícola que era o Brasil. Ou seja, era insustentável. A ideia de sustentabilidade não passa de uma malandragem capitalista.

CS – Tudo é transformado em mercadoria? Tu perguntas em teu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” de modo objetivo: “Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras?” Que é mundo esse o que se poderia fazer para evitar esse empacotamento?

Krenak – Saímos do século XX e entramos no século XXI em determinado ritmo, se olhar o farol para saber se estava verde ou vermelho. Atravessamos em desabalada carreira sem olhar o semáforo. Não conseguimos embalar outro mundo diferente deste estragado que trouxemos do século passado. Outro dia, a Lilia Schwarcz publicou um texto dizendo que o século XX ainda não acabou. Ele contaminou o século atual. Estamos empacotando para as futuras gerações um mundo velho e estragado. É a cara das gerações que nos antecederam. Precisamos questionar e entender um pouco esse processo para não continuar empacotando mundos velhos e estragados para as futuras gerações.

CS – O governo federal tem insistido na possibilidade de exploração de terras indígenas, inclusive de mineração. O presidente da República fala em integração dos índios ao ritmo da sociedade em geral.

Krenak – Essa visão antropocêntrica de exploração da natureza ficou no passado. Quem insiste nisso são os negacionistas, os que negam a ciência, a mudança climática e a inviabilização do mundo em que estamos metidos. Eu não tenho muito o que analisar. Tenho de rebater isso como um jogador de pingue-pongue.

 


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