Entrevista com Peter Sloterdijk

Entrevista com Peter Sloterdijk

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Entrevista do Caderno de Sábado/Peter Sloterdijk

Da razão cínica à globalização da corrupção

Juremir Machado da Silva e Jacques Wainberg*

Considerado o maior renovador da filosofia alemã contemporânea, Peter Sloterdijk conseguiu uma façanha com o livro Crítica da razão cínica (1983): fazer dele a obra mais vendida na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial. Reitor da Universidade de Karlsruhe durante 14 anos, apresentador do programa de televisão “O quarteto filosófico”, polemista nato, autor de Regras para o parque humano, No mesmo barco, ensaio sobre a hiperpolítica e O desprezo das massas – ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna, ele esteve em Porto Alegre como palestrante no ciclo Fronteiras do Pensamento. Nesta entrevista para o Caderno de Sábado, mesclando inglês e francês, ele mostrou sua visão dos grandes problemas filosóficos e políticos da atualidade.

Caderno de Sábado – O senhor tratou, no seu texto mais famoso, das transformações do cinismo. O seu livro mais recente chama-se Esferas. A globalização é a bolha do cinismo contemporâneo dominante?

Peter Sloterdijk – Defini o cinismo como uma força iluminada da consciência. Vejo uma conexão indireta com a globalização. No mundo globalizado a ilusão da consciência moral vai explodir porque ele está cheio de desigualdade e injustiça. Isso significa que todo mundo está mais ou menos inclinado a entregar-se aos escândalos morais.

CS – O cinismo não tende a impedir o diálogo entre as pessoas?

Sloterdijk – O cinismo surge justamente quando o diálogo se torna impossível por uma série de razões. Há uma objetivação mútua. Viramos todos objetos uns dos outros. Os filósofos chamam isso de reificação.

CS – O diálogo tornou-se o problema da Europa com os refugiados?

Sloterdijk – Essa falta de diálogo será resolvida pela política do poder, que, no caso, não é a do expansionismo, mas a do isolacionismo. A Europa está aprendendo essa política cínica com o fechamento das fronteiras. Eu defendo uma política de controle moderado da imigração. Uma abertura moderada. Dentro de 30 anos, metade da população europeia será idosa. Precisamos de uma atitude semelhante às da Austrália e do Canadá, de acolhimento projetado. Uma política descontrolada de imigração produzirá uma enorme tensão. Grande parte dessas pessoas nunca será integrada à cultura europeia.

CS – O senhor parte de uma frase de Heidegger sobre onde nos situamos quando dizemos que estamos no mundo para construir seu livro Esferas. Para os refugiados a Europa aparece como uma bolha fechada?

Sloterdijk – A Europa nunca foi uma bolha fechada. Sempre acolheu muitos imigrantes, com muita movimentação interna. A politização dessa cena é um fenômeno recente. Com a crise, dois milhões de ucranianos pediram vistos para entrar na Inglaterra. De lá, seguiram para outros países europeus. A questão dos refugiados de guerra é diferente. Procuram abrigo enquanto suas casas são devastadas por guerras civis. Alguns, querem voltar depois do fim dos conflitos.

CS – A filosofia pode fazer algo pelos que se desesperam? Os seus livros provocam polêmica e interpelam as pessoas. Mudam a vida?

Sloterdijk – A filosofia começou como uma espécie de pedagogia da vida. Era um metadiscurso para a educação. Não é correto dizer que a filosofia não mudará a vida das pessoas. Ao contrário, ela está na coração das transformações. Atrás de toda educação, há uma convicção filosófica que ajuda a apontar a direção da evolução humana. A educação permitiu que as pessoas pudessem filosofar sobre a vida, levando-as à contemplação. É correto dizer que a filosofia se fechou na bolha acadêmica. Tento passar essa fronteira, tornando a filosofia mais acessível a todos, aproximando-a da literatura e das artes. O melhor da filosofia atualmente acontece é no universo das artes.

CS – Por que os seus livros provocam polêmica?

Sloterdijk – Não sei. A provocação é um procedimento artístico. Sem provocação não há avanço. Quero ampliar o ponto de vista da observação. Mas não crio as polêmicas. Elas vêm dos meus críticos. Sinto-me, às vezes, ofendido na minha visão pessoal filosófica. Trabalho com certos temas sensíveis ao longo do tempo. Retomei a crítica do cinismo. Darei neste ano aula em Stanford e farei uma releitura das críticas que fizeram ao meu livro Crítica da razão cínica. Falarei de uma teoria geral da corrupção. Acho que poderá interessar, de certo modo, ao Brasil. O cinismo está no centro da crise moral contemporânea. Há uma globalização da corrupção.

CS – O cinismo tornou-se conservador?

Sloterdijk – A atitude cínica torna-se mais visível quando a esperança política fracassa. Vira uma mentalidade coletiva. É uma luta aberta entre os que têm esperança e os desapontados. Uma vitória de Donald Trump nos Estados Unidos será a expressão de um ressentimento. Essas pessoas não são inteligentes o suficiente para tornar-se cínicas. Uma vez ouvi de um político algo com o que concordo: o principal problema não é o cinismo, mas a estupidez. Qualquer pequeno bandido pode declarar guerra ao Estado de direito. O terrorismo, por exemplo, com seus bombardeios a inocentes, encarna um tipo de atrocidade e barbárie que se pensa como realismo imoral.

CS – O senhor não perde, vendo isso, a fé na racionalidade humana?

Sloterdijk – Goethe disse: quem não for capaz de sentir desespero não pode viver. Um adulto moral começa a ser o que é indo além disso.

CS – Ainda é possível esperar que a mídia ajude a melhorar o mundo?

Sloterdijk – Desenvolvi uma leitura crítica da mídia. A função moral da mídia é criar coesão social num mundo sem o amparo da religião. É uma visão meio cínica. A função da mídia é fazer com que emoções sejam compartilhadas, não apenas transmitir informações. A cada ano fica mais claro que surgem novas categorias para dar conta disso. Não se pode explicar isso a partir de uma teoria da comunicação. Há sedução. Precisamos falar de epidemiologia. A mídia pode disseminar doenças mentais coletivas. Temos de recorrer também à parasitologia.

CS – A crença na política atingiu um ponto de saturação?

Sloterdijk – As pessoas ainda precisam aprender a viver num regime constitucional. Vivíamos sob as ordens de um rei. Estamos num sistema aberto. Podemos resistir à tentação permanente da desmoralização.

* Professores da PUCRS

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