Entrevista com Roberto DaMatta

Entrevista com Roberto DaMatta

“Somos todos iguais diante da morte”

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Considerado um dos maiores antropólogos brasileiros, Roberto DaMatta, autor de livros seminais como “Carnavais, malandros e heróis”, “A casa e a rua” e “O que faz o Brasil, Brasil?”, lançou no final de 2020 “Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro” (Rocco). Trata-se da retomada de um mote que funciona como traço distintivo da cultura brasileira. Pensador atento ao cotidiano, capaz de  criar categorias originais e facilmente compreensíveis para ler as manifestações da vida corrente, DaMatta continua olhando por trás das máscaras sociais, revelando as representações que fazemos de nós mesmos numa estrutura social assentada na hierarquia dos cargos e dos títulos e na forças relações privilegiadas. Nesta entrevista para o Caderno de Sábado, DaMatta, 84 anos, mostra onde termina a hierarquia social.

Caderno de Sábado – O que é cultura?

Roberto DaMatta – Cultura é aquilo que de certo modo garante a nossa liberdade. Rousseau e Nietzsche falaram disso. Nietzsche disse que o homem é um animal doente. Rousseau também falou isso. Por que somos doentes? Um tigre nasce tigre e morre tigre. É governado por uma programação que independe dele. Pode ser domesticado. Isso não é deixar de ser tigre. É ser um tigre domesticado. Nós, ao contrário, como disse o velho Jean-Paul Sartre, somos condenados à liberdade. Somos condenados a escolher. Passamos a vida inteira escolhendo. O que é cultura? É uma edição, assim como a gente edita livros ou um texto mal escrito, mal enjambrado, que é como a gente nasce. Nascemos com certos impulsos, pulsões, como dizia o velho Freud, traduzido, às vezes, como instintos. Mas somos fabricados a partir de uma casa, de uma família, de uma cidade, de um bairro e de um país. Tem um elemento, que poucas pessoas falam, mas que é fundamental definir: a língua. Quem está falando? Eu estou falando português? Ou o português está falando através de mim como se fosse um espírito? O nosso entendimento, a nossa eventual empatia, simpatia, amizade, seriam impossíveis se estivéssemos falando duas línguas diferentes. Embora estejamos num mundo globalizado pouca gente tem consciência de ter vivido numa sociedade em que a língua não é sua própria língua. Eu fui a primeira pessoa da minha família que saiu do Brasil. Fui morar nos Estados Unidos. Estudar. Não fui fazer turismo. No turismo praticamente você não sai da sua bolha. Fica na bolha do grupo e do agente de turismo, o que é muito confortável. O turista não sai. Eu saí por ser estudante. Tive de ampliar o meu conhecimento de inglês. Essa consciência de ter de se comunicar através de um veículo, de um meio que não está dentro de você, é uma das características daquilo que os antropólogos chamam de cultura, definida por Taylor, no século XIX: tudo aquilo que os membros de uma sociedade organizada fazem, que tem a ver com maneira de pensar, de comer, de proceder. É um código de comportamento que vem de fora para dentro. É uma coisa que se aprende, que se junta inconscientemente com a maneira pela qual você foi recebido neste mundo. A gente sai de uma mulher – não é rotina sair de laboratório – e é recebido num palco, que nós não escolhemos. Como Shakespeare disse, o mundo é um palco, nós somos atores, temos um momento de entrada e um momento de saída. Não escolhemos entrar no palco nem qual o palco. Amigos dizem: como fui nascer no Brasil, país de terceira categoria. Por que não nasci na França? Tudo isso está sendo debatido por causa da Covid. O vírus um inimigo comum das culturas. Cultura é uma coisa que é aprendida sem escolha. Os papéis da vida são atribuídos, sem escolha. Só se vai escolher a partir de certa idade.

CS – Existe uma cultura brasileira?

DaMatta – Existe. Você só vai saber que existe uma cultura quando a contrasta com outra. É como a língua. Quando a gente acorda, no Brasil, vai tomar café da manhã. Nós Estados Unidos, vai fazer uma breakfast. É mesma coisa? Não. Nos Estados Unidos é praticamente uma refeição. É ovo, bacon. No Brasil, eu acordo com vontade de tomar café com leite, com açúcar, e comer meu pãozinho com manteiga. Passei dez dias no Japão, numa conferência internacional sobre rituais, numa cidadezinha muito pequena, hospedado numa estalagem, que não tinha nem privada. Na maneira japonesa tradicional, asiática, que também a dos índios brasileira, você fica de cócoras. Alguns colegas tiveram dificuldades. Não conseguiam. Eu também tenho por ser velho. Na época, era jovem. Dormir era em tatame. Não tinha cama. O café da manhã japonês eu não conseguia comer. Os americanos têm isso de virar nativos. Eles são mais ousados na experimentação disso que chamamos de maneiras de viver. Eles queriam virar japoneses. Eu, como brasileiro, queria aprender sobre o Japão, mas a minha receita brasileira dizia para fazer, mas com calma, gradativamente, vamos sair da escravidão, que é horrível, devagarinho, com a lei do Ventre Livre, não deixando mais ninguém ser chicoteado em público, depois a gente esconde a descarga de navios, que acontecia na Praça XV, vamos fazer isso no Valonguinho, que é mais longe, depois se faz a lei que liberta quem tem mais de sessenta anos e finalmente se assina a Lei Áurea. Se alguém tem 80 anos, tem um filho escravo, de 40 anos, um neto livre. Impede-se por medidas culturais e legais que o escravo tenha uma consciência. Se o filho quer se revoltar, entrar no quilombo do Leblon, o conselho do pai é esperar mais vinte anos para ser livre, ainda mais que o filho desse escravo já é livre. Uma das características da nossa cultura é a capacidade de digestão, de canibalismo, como falava Oswald de Andrade.

CS – Qual é o principal traço da cultura brasileira: a desigualdade, a dissimulação ou o seu “você com quem está falando”?

DAMatta – É uma sociedade que foi escravocrata, patriarcal e aristocrática. O rei veio para cá. Sempre fomos aristocratas. Era uma colônia portuguesa, como era Angola, como tinha na China, Macau, na Índia. Essa sociedade é profundamente marcada pelo espírito colonial de fidalguia e de aristocracia. Sérgio Buarque de Holanda acentua que o Brasil foi descoberto em 1500, mas a colonização só começou oitenta, noventa anos depois, quando os franceses e os holandeses também descobriram o Brasil. A criação de um sentimento de nacionalidade começa justamente com o contraste entre o modelo colonial ibérico e brasileiro e o modelo francês, protestante, e o holandês, mais protestante ainda, em Recife e no Maranhão. Esse contraste tem a ver com diferença de tipo físico – eles eram muito mais brancos, de olhos azuis, cabelos vermelhos –, de nomes, a língua que falavam era diferente, a maneira de construir as cidades, os povoados, tudo diferente. A religião é fundamental. Não eram católicos. Como se podia não ser católico num mundo dominado pelo catolicismo? Temos um código duplo, uma continuidade de escravismo, patriarcalismo e do modelo aristocrático de vida que vai pelo século XIX praticamente inteiro. Na Europa, o século XIX é Napoleão, é a revolução. Temos um código duplo, uma ética de ambiguidade, tudo o que posso fazer tem duas possibilidades: de maneira moderna, republicana, seguindo as regras universais, ou de maneira antiga, através da pessoalidade, dos meus conhecidos. Quando fiz uma pesquisa, faz 30 anos, na periferia de São Paulo, eu perguntava para gente que se definia como pobre, quando vai colocar um filho na escola, matricular alguém, entrar em contato com uma agência do Estado, o que faz? Todas as respostas passavam por “vou procurar alguém que conheça alguém daquele lugar”.

CS – A relação comanda tudo o que fazemos?

DaMatta – Exatamente. Como eu digo nos meus livros, é uma sociedade relacional. Entretanto, como tudo na vida, uma sociedade individualista tem seus limites, por exemplo, como uma sociedade individualista explica que a gente torça por um time de futebol e faça uma campanha por um negro morto por um policial nos Estados Unidos, como esses indivíduos se juntam e formam uma coletividade. De onde vem a opinião pública? Tem muita coisa que se comunica às pessoas. Outras, não. É uma contaminação. Numa crônica, fiz uma analogia entre a pandemia e a cultura. Somos contaminados culturalmente. A gente aprende. Como se aprendeu português? Não sei. Como ficou doente? Não sei. Acho que foi no bar.

CS – Estamos contaminados por essa maneira secular de comportamento, de distinção, hierarquia, dissimulação. A cultura brasileira é profundamente hipócrita?

DaMatta – A hipocrisia tem uma coisa muito vantajosa, pois permite usar duas máscaras. Temos uma máscara igualitária que, em geral, exibimos em nossas reuniões de departamento ou num programa de rádio, que se traduz numa hipocrisia, um populismo de raiz. Todos somos populistas. Provavelmente somos populistas com nossos empregados. Eles ganham pouco, mas a gente trata bem. Também tem de raiz uma atitude idealizada, menos realista, que é de transformar o Brasil numa sociedade mais justa, mais igualitária, mais moderna, em que as pessoas obedeçam aos sinais de trânsito, entrem na fila sem bufar, tenham mais paciência com os desconhecidos, com a impessoalidade do mundo moderno, que é uma necessidade, pois é impossível viver numa sociedade de mais de quinhentos mil pessoas sem sinais e modelos de comportamento válidos para todos. Se isso não for internalizado, Porto Alegre não funciona.

CS – A imagem daquele juiz, em Santos, humilhando o guarda que o multou por não estar usando máscara de proteção contra o coronavírus é o que caracteriza o Brasil do “você sabe com quem está falando”?

DaMatta – Caracteriza um pedaço do Brasil. Por outro lado, tem uma sociedade que passou de uma aristocracia dominante, de um escravismo dominante e de um patriarcalismo dominante para uma sociedade muito mais democrática, que elegeu JK, Fernando Henrique Cardoso e um Lula. Há uma dialética entre a casa e a rua, com áreas de autonomia e áreas de mediação muito fortes, com portões, varandas, quintais.

CS – O senhor escreveu um belo livro sobre isso, “A casa e a rua”. Continuamos a ter um comportamento em casa e outro na rua? 

DaMatta – A casa brasileira é tradicional. É hierárquica. Eu dou aula para jovens. Se um jovem, ou uma jovem, tiver bom emprego, chegar para pai ou mãe e disser que vai alugar apartamento no mesmo bairro e morar sozinha, ouvirá: “O que nós fizemos? Algum problema com você?” Nada. É difícil. Eu saí de casa igualzinho uma moça. Mamãe me deu o braço e eu entrei na igreja. Casei, saí de casa. Alguns dos meus irmãos não fizeram isso. Mamãe ficou preocupada. Papai não falava nada. Os homens não falam. A dúvida nacional é saber se nós vamos continuar a trabalhar ou deixar que trabalhem em nós esses resíduos aristocráticos das nossas elites regionais, de Norte a Sul, em alguns lugares com mais força, esse pessoal que já tomou vacina. Não tenho dúvida que nas velhas regiões do Brasil as elites já foram vacinadas.

CS – O senhor concorda com o conceito de lugar de fala?

DaMatta – A ideia é importante. O que é? Meninos, eu vi. Eu tenho 84 anos, meninos, eu vi o golpe militar. Eu não vi, estava nos Estados Unidos, desde 1963, quando Kennedy foi assassinado. O lugar de fala é uma perspectiva, um ponto de vista, que fica muito sério na medida em que quem o usa tem a consciência disso. Você tem um viés profissional e eu tenho outro. Em todos os meus livros e crônicas eu me defino: sou um antropólogo. Tenho uma visão de mundo. Não penso como um cientista político. Nem como um economista ou como um sociólogo. O viés antropológico, que distingue a minha obra, dá valor ao protagonismo dos costumes, das práticas sociais realizadas na semiconsciência, como se fossem naturais. Eu tive um debate com Darcy Ribeiro. Ele criticava o Museu Nacional, no qual eu era chefe do departamento de antropologia, por não ter traduzido um alemão importante, Kurt Niemuendaju. Eu lhe perguntei: por que você, que foi ministro da Educação e chefe da Casa Civil do João Goulart, não traduziu o livro? Isso de jogar a coisa no colo do outro e eu sou inocente... Vamos assumir as nossas responsabilidades. Eu sou professor universitário, avô, pai, sou chefe de um grupo, tenho uma família, tenho de assumir esse papel. O que ele me diz? Que certas coisas eu não posso fazer. Outras, eu devo fazer. Essa distinção de papéis sociais é fundamental para conquistar a modernidade. O moderno vivido como um estilo de vida, como democracia, como igualdade perante a lei, não é coisa fácil em sociedade alguma, nem nos Estados Unidos. A gente viu isso agora, com o Donald Trump. Há uma luta entre duas visões de mundo importantes. Numa, começa-se pelo todo (Deus fez o mundo). Na outra, começa-se pela parte, que é o individualismo moderno. O que fui fazer ao ir estudar os índios Gaviões, em 1961, no sertão do goiano? Fui ver o lugar de fala deles.

CS – A pergunta tem a ver com o fato de que há quem veja nesse empoderamento de negros, mulheres, uma forma de impedir de falar, como se branco não pudesse falar de negro. Há uma reação conservadora?

DaMatts – Ser condenado à liberdade é ser condenado ao exagero. Qualquer posição pode ser reclamada ou clamada como sendo muito tímida ou muito forte. O lugar de fala usado como uma perspectiva é: eu sei o que é ser negro numa sociedade que durante cinco séculos foi escravocrata, na qual os meus ancestrais vieram para o Brasil em navios negreiros, nos quais 40% morriam, vinham nus, defecando, urinando em cima dos outros. O cheiro desses navios espantava, alguns enlouqueciam na viagem, que era um ritual de passagem em que se deixava de ser humano para virar morto social, trazido por um senhor que te comprava num leilão. Esse discurso é mais do que legítimo. Agora, se eu disser que você não pode falar de velho por não ser velho, aí me torno tão nazista quanto os nazistas que condeno. Viro proprietário de uma fala, monopolizo uma fala, uma posição, um gênero, uma classe social. Isso impede o relativismo, a nuance, o uso da liberdade, a brecha que permite a comunicação fraterna. O lugar de fala abre para quem não faz parte do lugar de fala, que é o outro.

CS – A cultura brasileira é machista, racista e homofóbica? As grandes lutas dessa época são contra tudo isso e contra a desigualdade?

DaMatta – A desigualdade tem sido fundamental para acentuar tudo isso que foi citado. O gay é visto como inferior, o preto é inferior, quem não tem tal título é inferior, etc. O que significa se vacinar contra a desigualdade? Deixar-se contaminar por um princípio democrático, humano: todos nós somos iguais perante a morte. A pandemia nos humanizou. Pode ser ministro ou chefe de Estado e morrer. Pode ser rico, pobre, preto, branco. É claro que os pobres sempre sofrem mais. O morto não tem lugar de fala. Temos de por na cabeça que um dia vamos sair do palco. O Brasil se caracteriza por tudo que isso foi dito, mas também por estar discutindo intensamente todas essas dimensões do atraso e do reacionarismo, reconhecendo que essas dimensões travam, não o progresso, que não acredito nisso, é do século XIX. Temos de banhar o mundo com a nossa humanidade e com mais dúvidas. A pandemia talvez deixe uma vacina contra nossa onipotência. Existe um limite. Qual é o limite do lugar de fala: a fala do outro. Faz cinquenta anos que escrevi sobre o você sabe com quem está falando. Continua em voga.

 


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