Entrevistas marcantes: Darcy Ribeiro, o visionário

Entrevistas marcantes: Darcy Ribeiro, o visionário

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"A antropologia brasileira é vadia"

Senador eleito pelo PDT, ex-vice-governador do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro foi chefe da Casa Civil e ministro da Educação do governo de João Goulart e exilado político durante a ditadura militar implantada em 1964. Um dos poucos antropólogos brasileiros de renome internacional, nasceu em Minas Gerais, em 1922, aprofundou-se nos estudos de sociologia, ciência política e história. Pesquisou tribos da Amazônia e do Brasil Central. Em 1956, tornou-se professor de Etnologia na Universidade do Brasil. Ribeiro escreveu o Processo Civilizatório, As Américas e a Civilização, O Dilema da América Latina, Os Brasileiros, Os Índios e a Civilização. Como ficcionista, publicou Mayra e O Mula. Em duas visitas a Porto Alegre – junho de 1989 e janeiro de 1991 – concedeu-me longas entrevistas. Nada escapou de sua crítica arrasadora.

A construção da identidade cultural é uma questão fundamental. Opõem-se duas vertentes. A primeira preconiza a internacionalização da cultura e vê a identidade como processo. A outra fala em ethos e valoriza as tradições. Qual a relação entre identidade e tradição?


Darcy Ribeiro -Os antropólogos discutem muito a questão da identidade cultural. É a moda. Usa-se identidade cultural no sentido de identidade étnica. Até que ponto o gaúcho é brasileiro e não é argentino? Na realidade, estou muito preocupado com isso e venho trabalhando a tentativa de definir em que momento surge um ser que não é índio, não é negro, não é português e que é brasileiro. Precocemente aparece essa figura, de alguém que não é ninguém e, não sendo ninguém, cria o espaço para ser o novo, aquilo que não existia. Isso se dá tanto na fusão do português com o índio, quanto do português com c negro. Mas isto não é visto de fora, pois as pessoas que tinham voz, quando dão testemunho, se identificam com o português, ainda que sejam descendentes de índios, mais índios do que portugueses. (...) Em grande parte, a intelectualidade brasileira é mimética. A atitude dela é de pai de santo, recebe uma divindade que entra pela cuca, fala pela boca de Exu ou Ogum e dita o que contar. Sobretudo os cientistas sociais abrem a boca para que fale Lévi-Strauss ou Althusser. A grande alienação é essa. Há uma vinculação ao último grito de Paris, Nova Iorque ou Londres. Não se procura o conhecimento aqui. Na minha geração, uma quantidade de antropólogos aderiu ao estruturalismo e deu com os burros na água, pois para a França o estruturalismo não tinha importância alguma. A obra deles é uma nota de rodapé de página do Lévi-Strauss ou Althusser. Nenhum deles faz esforço real para ajudar a construir a cultura brasileira.


Ainda faz sentido falar em categorias como alienação, cultura legítima versus cultura espúria, genuíno e inautêntico? Não são conceitos ultrapassados, pertencentes ao imaginário da década de sessenta?


D. R. – Nunca foram tão importantes como são agora. A alienação é a negação do próprio ser. É a consciência não correspondente à realidade. Ou é a alteração da realidade do espírito da realidade do ser. A primeira alienação sofrida há alguns bilhões de anos deu-se quando o homem deixou de ser bicho. É um processo longo de passagem da escala zoológica para a cultural. O homem, em determinado momento, desliga-se, tomando-se independente do conforto da carga genética e inata. E cria a carga cultural. Há a alienação representada pela perda da animalidade, que nunca se completa. Freud gritou que continuamos bichos, a animalidade está aí. somos da escala biológica. A outra alienação fundamental é a das classes. Passamos. em certo instante, a viver sob estratificação social. As pessoas deixaram de ser tratadas de acordo com as suas identidades ou personalidades para ser vistas como categorias, senhor ou escravo. Há, por fim. uma alienação fundamental presente no Brasil desde vários séculos: é a alienação de quem absorve a consciência do outro, em vez de ter a consciência de si mesmo. Quando o brasileiro acha que Deus é branco, de olhos azuis, de cabelos louros. é horrível, pois corresponde à imagem que o inglês pode ter ou até um português, mas não o brasileiro, povo moreno. No mundo inteiro encontram-se culturas de gente muito diferente. O japonês é totalmente diferente do europeu, mas está orgulhoso dos seus olhinhos e da homogeneidade nipônica. Há uma antropologia cética, relativista, que é a traição da própria antropologia. Ela declara que rinoceronte não é superior à galinha, mas diferente. Então, ingleses e xavantes não têm diferença nenhuma. São iguais. Nem superiores e nem inferiores: diferentes. Isso esconde a dominação de que o povo brasileiro padece, as alienações que ele sofre, e é uma tentativa de anular a realidade. Trata-se de uma antropologia reacionária que desconhece as contradições da sociedade.


Como reage o antropólogo Darcy Ribeiro na medida em que o seu pensamento, considerado evolucionista, é visto como superado? A antropologia brasileira está de um lado e o senhor de outro? Betty Meggers, em 1968, prefaciando O Processo Civilizat6rio, declarava estar o evolucionismo em ascensão. Hoje, ao contrário, condena-se o reducionismo e o historicismo dos evolucionistas.


D. R. – A onda de que falava Meggers cresceu no mundo inteiro, exceto no Brasil. Marvin Harris, por exemplo, a principal figura da antropologia norte-americana, é evolucionista. Já não há mais um antievolucionismo; o que havia foi vencido pelo velho Gordon Childe, na Inglaterra. E pelo Lewis, nos Estados Unidos. Foi o desmascaramento do fato de que nos Estados Unidos a antropologia tinha sido expulsa. Engels tomou A Sociedade Primitiva, de Morgan, e o reescreveu como Origem da Família, da Propriedade e do Estado; passou a ser uma obra comunista. Todos os reacionários americanos criaram então horror à antropologia. Aí chegou o Franz Boas e resolveu fazer antropologia burra – importante pela pesquisa de campo –, pois se negava a ser rica. Uma antropologia que se nega a teorizar é uma contradição em si. Tudo isso foi desmoralizado nos Estados Unidos há 30 anos. Mas como o Brasil recebe tudo com atraso, ficou-se cultivando uma antropologia que era e é antievolucionista. Há institutos no Brasil com dezenas de doutores em ciência política; 80% do pessoal formou-se durante a ditadura, quando era impossível fazer política. O meu colega Mário Alves, intelectual comunista, morreu com um pau fincado no ânus naqueles mesmos anos de formação dos politólogos. Como se poderá entender uma ciência da política na hora em que estava proibida? Claro que essa gente terminava os seus estudos lá fora, pois era conivente com a ditadura. A antropologia está se lavando da bobagem relativista. O relativismo declara que o Brasil não precisa se desenvolver. Diz que é preciso ver o nosso futuro e não o dos Estados Unidos. Tudo isso é muito inteligente, mas serve aos que estão contentes com a situação atual. A atitude oposta só pode ser a de que a sociedade passa por etapas, autonomamente, como os Estados Unidos, ou não. Por isso, falo em atualização histórica ou aceleração evolutiva. Antropologicamente, o Brasil está desafiado a sair da condição de dependência.


Há um discurso de intelectuais como Michel Maffesoli, Jean-François Lyotard e Jean Baudrillard que diagnostica a falência das grandes narrativas, caso do marxismo e de todos os esquemas macro de explicação do mundo. Cresceu o interesse pelo cotidiano, com as micropráticas. O Processo Civilizatório, um livro globalista, ainda se sustenta?


D. R. .O Processo Civilizat6rio é o único livro teórico brasileiro traduzido para o alemão, francês, inglês e todas as línguas principais. Houve debate nos Estados Unidos sobre a minha obra. E na Alemanha. Fui o único teórico latino-americano a provocar uma discussão internacional. O único teórico brasileiro sou eu. Os meus estudos sobre a antropologia das civilizações tem 146 edições. Há quem nada publicou e se acha muito importante.


A utopia enquanto projeto político está em desaparecimento ? O ceticismo, o desencanto, o pragmatismo e o utilitarismo substituíram o encantamento revolucionário da década de 60? A juventude de 80 é alienada?


D. R. – Em 60, só não eram utópicos os reacionários, os que acabaram com a democracia para servir aos Estados Unidos. A UNE lutava, o Brasil discutia com entusiasmo, o cinema florescia. E tudo durou até 1968. Ser utópico era tentar colocar sob controle o capital estrangeiro. Era fazer a reforma agrária para dez milhões de pessoas. Era ser realista. Estou, entretanto, contente em ser derrotado. Quando fui homenageado na Sorbonne – sou o único brasileiro a receber o título de doutor honoris causa da mãe das universidades – disse que aceitava o prêmio como um consolo dos meus fracassos. Fracassei ao tentar salvar os índios, alfabetizar, fazer a reforma agrária e criar uma universidade necessária. Mas prefiro o fracasso a vencer com os ditadores. O problema é que a juventude está distanciada dos intelectuais responsáveis, nem lê mais os brasileiros. Quando voltei à universidade brasileira, levei um susto; havia estudante de antropologia que nunca tinha lido uma obra inteira. É preciso lutar contra o baixo clero que tomou conta do mundo universitário e ajudou a criar a geração xerox. Somos donos da província mais bonita da Terra. Podemos fazer uma sociedade feliz. Conheço o mundo, vi a Suécia e a Finlândia, os homens gordos e tristes, os suicídios multiplicando-se, sem o vigor e o gozo dos nossos homens no carnaval. Vi uma Alemanha sem causa, a mesma terra que deu Rosa de Luxemburgo e Marx. A religião deles, hoje, é o jardinzinho, o verde, uma merda. Estou velho, os jovens é que devem mudar tudo isso.


Como o senhor, um militante político, resolve o problema metodológico do distanciamento, uma preocupação dos antropólogos acadêmicos?


D. R. – Há uma antropologia acadêmica que é muito ruim, pautada pela moda. Durante muito tempo, foi indigenista: o índio era tudo. Hoje, isso está esquecido. A antropologia atual é barbarológica, só sabe tratar de minorias, de grupos especiais, é bizarra. Saiu dos índios para estudar as putas, os velhos e os homossexuais. Trabalha com os grupos desviantes; é o desvio da antropologia. Ela é incapaz de encarar a inconsciência do homem diante desta realidade de 150 milhões de brasileiros. A antropologia, como a sociologia, só é capaz de fazer pesquisa científica bem fundada sobre temas irrelevantes. Ficam nessa masturbação, tratando de pequenos assuntos porque são incapazes de abordar o essencial. Esperam que as coisas comezinhas analisadas sejam iluminadoras de algum aspecto da cultura ou da natureza humana. Muito mais do que estratégias do saber são modalidades de sobrevivência do antropólogo acadêmico. Foge-se do real. O Brasil tem uma antropologia popular copiosa, como todo povo indígena. Basta perguntar aos índios caiapós e eles respondem que foram feitos de tal madeira boa e rija; daquela com que Deus limpou o cu vieram os outros. É uma antropologia etnocêntrica que explica os outro povos. A antropologia no Brasil é uma introjeção no povo da mentalidade da classe dominante. Em qualquer mesa de café é possível realizar uma pesquisa perguntando por que o Brasil não deu certo. Alguns dirão: mas o Brasil não deu certo? Tem tanta casa, edifício grande... Outros falaram em "estar em desenvolvimento". O Brasil é subdesenvolvido, atrasa-se cada vez mais, a distância em relação aos Estados Unidos, Japão e Alemanha aumenta. Quando eu era ministro da Casa Civil, o salário mínimo era de 127 dólares. O Jango queria elevá-lo para 250. Hoje, temos 70 dólares. Aparentemente, o método de trabalho do antropólogo seria tomar o discurso que os brasileiros fazem sobre si mesmos e refazê-lo. Fazer um discurso com o que a ciência dele pode dar para ter um entendimento mais realista, crítico e estimulante. Qual é o discurso popular induzido que faz com que tenhamos uma cultura espúria? Os antropólogos não querendo falar disso pois optam pelo relativismo.



Não é uma visão demasiado pessimista?


D.R. – Ainda há quem defenda que o fracasso brasileiro é produto do clima tropical. Só o tropicalismo do Caetano Veloso contestou isso. Nenhum antropólogo percebeu essa leitura. Veio da arte. Outros acham que o atraso é fruto da negritude e da mistura racial com índios e brancos. O racismo penetrou nas análises científicas. Os índios nos deram mais de 40 plantas fundamentais. O fator do progresso, na visão dominante, seria o branco. Ninguém o vê como o caçador de gente, o destruidor, o responsável pelo massacre dos nativos. Nós éramos, na origem, mais ricos do que os Estados Unidos (tivemos o açúcar e o ouro). O atraso deles transformou-se em desenvolvimento. A nossa riqueza, no inverso. Por quê? A antropologia afasta-se dos temas importantes para ocupar-se do exótico.


O senhor acompanha o trabalho de antropó1ogos brasileiros em evidência: Roberto DaMatta, Renato Ortiz, Gilberto Velho e outros?


D.R.Eles correspondem ao que acabei de descrever. Integram a categoria da antropologia vadia. Ajudam o discurso europeu a habitar o Brasil. Quando aparece um conferencista estrangeiro, eles vão ao orgasmo ouvindo o último grito de Viena ou Paris. Os gritinhos deles são sussurros que mal se ouvem nos subúrbios. É um escândalo. Mas esses homens ditam as normas de investigação antropológica no Brasil. É a força do monografismo contra a teorização de maior alcance.


Qual a leitura antropol6gica mais adequada do Brasil político do início dos anos 90?


D. R. No plano da cultura, que interessa à antropologia, o Brasil vive um drama: o de ter perdido a cultura arcaica e estar desafiado a entrar na moderna sem os instrumentos necessários. É um processo severo, semelhante ao do nosso nascimento, dado sobre a desindianização do índio, a desafricanização do negro e a deseuropeização do europeu. A resultante é a tábula rasa. Surgiram grandes igrejas barrocas, a língua portuguesa dominante e o traço messiânico. A mitologia é prodigiosa sobre a sociedade arcaica, capaz de formar identidade e sabedoria. Isso acabou na transição para a vida urbana. Na cidade, não vale nada saber dançar bumba-meu-boi. A única forma de entrar na cultura urbana é através da escola, que serve à classe média. É uma escola desonesta, que tem horror à criança popular e fabrica a exclusão. A criança foge da opressão da professora. Os franceses espantaram-se com a Xuxa (adoro essa menina bonita). Entendem que é absurdo induzir a criança à conduta erótica. É o exagero que nos caracteriza. Na Alemanha, vi alemães nus nas praças, mas é inocente. Aqui, a nudez é feita para desvalorizar o amor, o homem e a mulher. Vivemos um momento de transformação cuja única alternativa conscientizadora é a escola. Só que a intelectualidade brasileira é tão vadia, tão vagabunda, que no Rio Grande do Sul a tentativa de criar os CIEPs esbarrou na vocação do PT de ser a esquerda que a direita gosta. CIEPs foram fechados. Quantos intelectuais brigaram contra isso? Quantos antropólogos? Há que se lutar contra a pedagogia vadia, do discurso frouxo e descomprometido. Antropologia e pedagogia vadias não sujam as mãos. Masturbam-se com as verbas públicas.


Alguns antrop61ogos tentam relativizar o poder da mídia com leituras pluralistas de jornais e novelas. É aceitável?


D. R. – Os meios de comunicação, rádio e televisão, são as grandes formas modernas de difusão cultural. É uma lástima que tenham sido convertidos em negócios. Disso resulta que os melhores meios educacionais servem para deseducar. Meios mais capazes de influir moralmente atuam no sentido da irresponsabilidade, contra as regras do bem-viver. É bom para novela de televisão vender Coca-Cola. O resto é nada. Não sou contra o espaço privado. Contesto é a qualidade. A programação de televisão é muito vagabunda. Na competição, importa ganhar, a qualquer custo. Nenhum outro país admitiria a indução ao estupro e à violência das novelas brasileiras. Alguma dose de vivência é boa para a descarga da agressividade humana. A televisão, no entanto, espalha robôs. Na Alemanha, o livro tem espaço na tevê. Eu mesmo falei sobre O Mulo, em Frankfurt, durante dez minutos. No horário das 20 horas. Essa televisão parece chata para brasileiro idiota. Eu adoraria fazer uma novela, é um gênero interessante. Ela não quer contar nada, mas fazer conviver, reunir em torno de algo nesta sociedade atomizada. Seis novelas por dia, contudo, é estupidez. A luta delas não é jogar o público em outras formas de expressão, mas siderar o espectador.


Agosto de 1989/Janeiro 1991 (O pensamento do fim do século, L&PM)


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