Entrevistas marcantes: Luhmann, o desestabilizador

Entrevistas marcantes: Luhmann, o desestabilizador

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A estabilidade instável

O alemão Niklas Luhmann, um dos principais interlocutores de Jürgen Habermas, esteve em Porto Alegre em setembro de 1990. Autor de obras difíceis, em linguagem abstrata, entre elas A Legitimação pelo Procedimento, O Poder, Teoria do Sistema e Sociologia do Esclarecimento, ele é responsável por ideias extremamente novas e instigantes. A base de seu pensamento é a estabilidade na instabilidade, curiosa conjunção de mudança e conservação. Os críticos de esquerda asseguram que Niklas Luhmann é a síntese sofisticada do conservadorismo fim-de-século. Professor na Universidade de Bielefeld, nascido em 1929, Luhmann é um nome decisivo para a compreensão do pensamento dos anos 80.

JMS – Seu pensamento tem sido considerado a síntese do conservadorismo fim-de-século. As críticas partem de pensadores como Habermas e intensificam-se na esquerda intelectualizada. Qual a validade desses ataques?


Niklas Luhmann – O mundo mudou radicalmente nas últimas décadas. Isso implica alteração nas formas de percepção. No campo das políticas sociais, por exemplo, a ecologia tomou-se importante porque põe as comunidades em alarme e sacode a inércia política. A oposição clássica entre esquerda e direita perdeu a razão de ser. Apenas os mais arraigados ao fazer político convencional é que insistem em tal esquematismo. A dicotomia esquerda-direita sucumbiu devido ao reducionismo, ao maniqueísmo e à incapacidade para incorporar mecanismos mais flexíveis de negociação. O fim de século não é uma tragédia simplesmente, mas a remodelação dos artifícios de fabricação dos entendimentos sociais. Os socialistas estão fazendo política liberal. Enquanto tudo isso perdurar, o movimento ecológico continuará fora do espaço partidário. Não terá programa para assumir o poder.


Disso decorre que os cientistas sociais e fil6sofos precisam mudar os paradigmas analíticos ?


N. L. – Isso faz com que ocorram situações paradoxais. Enquanto os socialistas fazem política liberal, o movimento ecológico pode permitir-se não ser mais realista e moderado. Reconhecer a importância da ecologia não significa desconhecer sua atuação radical. Ela é útil na medida em que provoca reações ou pressões fortes para a composição do equilíbrio. Mas a ideia, o projeto ecológico, acaba por não amadurecer. Em outras palavras, nos últimos anos a ecologia cresceu como movimento, conquistou milhões de pessoas; para muitos é o substituto da política de partidos e tem sido tomada por signo da profunda reversão de paradigmas. No entanto, permanece um jogo radicalizado, que, empurrada pela moderação dos outros atores sociais (a chamada "esquerda"), aprofunda-se no tipo de posição esgotada. Os ecologistas precisam sempre, pois, obter maiores adesões e intensificar o isolamento e a radicalização. Sem poder, na prática, ou com apenas o suposto poder da ética, a ecologia mantém-se impossibilitada de mexer mais marcadamente na estrutura sistêmica que combate. Quando os ecologistas, de modo fragmentado, entram nos organismos oficiais, são domesticados. Esse fenômeno repete-se incessantemente.


A ecologia, portanto, está impossibilitada de revolucionar o mundo ocidental de acordo com os clássicos conceitos de revolução. Ainda é possível apostar na alteração das estruturas sociais ?


N. L. – Não. Evidentemente não. Aliás, alteração total das estruturas sociais a partir de um movimento monolítico e capaz de gerar a mudança radical de um golpe jamais existiu. Em verdade, as transformações da sociedade contemporânea são muito mais amplas do que a teoria marxista foi capaz de prever e está disposta a aceitar. O corte não se faz abruptamente. Isso era demasiado simples. Gerava as incompreensões típicas do período pós-revolução bolchevique, com a descontinuidade entre mudança infraestrutural e superestrutural. O marxismo fez previsões ao procurar estabelecer leis históricas. Hoje, a sociologia é modesta e deve reconhecer sua modéstia. Ninguém sabe o que acontecerá a longo prazo. Neste momento, qualquer descrição sobre as condições organizacionais do amanhã são levianas e sem fundamentação científica.


Qual o estatuto de sua teoria sobre a instabilidade na estabilidade ?


N. L. – O núcleo da crise dos paradigmas, caracterizadora do período posterior à Segunda Guerra Mundial, e, fundamentalmente, da década de 80, é o processo de mudanças aceleradas, a velocidade esquizoide da modernidade tardia. Logo, não podemos ter uma só descrição da sociedade, mas várias. A monovalência discursiva ruiu, tornou-se insustentável. A ciência articula-se agora no jogo da diversidade teórica. Nenhuma teoria sozinha tem representatividade ou autoridade suficiente para legislar sobre o concreto ou favorecer esquemas explicativos completos e incontestáveis. A sociologia não está em condições nem sequer de dizer o que é a sociedade hoje. Os sociólogos, até certo ponto, desesperam-se com essa perda de poder analítico. A realidade, porém, obriga-nos a reconhecer o impasse. Quando não se consegue o consenso na sociedade civil é preciso ter mecanismos que deem conta das opiniões divergentes de maneira que elas não se tornem politicamente perigosas, pelo menos para aquele momento. A esquerda aceita isso quando fala em processualística.


O senhor é um renovador do funcionalismo (modelo malvisto pela esquerda devido ao mecanicismo, à relação com as ciências naturais e a não dar conta da mudança), mas está preocupado com o movimento. Como se dá a articulação entre mudança e conservação, entre conflito e harmonia, entre a necessidade de evitar o perigo da divergência e a constatação de que ela é a essência da atualidade ?


N. L. – Não posso imaginar uma sociedade sem conflitos. O conflito é constitutivo da estrutura social. As regras são procedimentos legitimadores de acordos que controlam os conflitos para que eles não se tornem obstáculos à construção. É paradoxal. São os conflitos que movem a sociedade. Isso vale também para a ciência ou a concorrência na economia. A tensão conflitual determina o arejamento e deslocamento de valores menos funcionais. No entanto, o conflito não pode levar ao descalabro. Ele precisa de limites, sempre móveis, que articulam a dinâmica de cada sociedade. A política democrática está assentada sobre o reconhecimento da conflitualidade. Não se pode pensar que a democracia pressupõe a harmonia total, contra a tensão. Ao contrário, a democracia baseia-se no confronto de posições, regulamentadas, coordenadas e passíveis de rediscussão permanente. O conflito é condição de individualização e tomada de posição pessoal. A recusa do conflito pressupõe a imposição de uma ordem que não aceita a divergência.


Interlocutor de Habermas, o senhor discorda da possibilidade de realização de um consenso argumentativo. Parece-lhe uma idealização pensar que mais de cinco bilhões de pessoas tenham condições de entrar em acordo, empiricamente falando. Habermas pretende um consenso concreto ou é a ação comunicativa um ideal de valor, um referencial em favor da dialogicidade ?


N. L. – Acho que Habermas não pensa em um consenso empírico, pois seria absurdo demais para uma pessoa sábia. A concepção de consenso argumentativo deixa margens para essa dúvida ou, o que é pior, para postular-se, a partir de Habermas, tamanho disparate. Ele deseja, creio, que as pretensões de validades objetivas, de validades universais, sejam discutidas e apreciadas. Habermas, caso minha linha de raciocínio esteja correta, pretende que nada é aceitável sem a filtragem racional. É a clássica luta contra a aceitação de dogmas. Em se tratando de realização empírica, entretanto, mesmo na chamada "aldeia global" não se conseguiria o consenso comunicativo para cada problema importante. A democracia direta só é compatível com comunidades pequenas. O mundo contemporâneo, por isso, opera com a democracia representativa.


A estabilidade dinâmica que o senhor prega pode ser reduzida ao termo modernização-conservadora?


N. L. – A estabilidade dinâmica é a articulação entre transformação e manutenção de regras passíveis de manter expectativas sociais. Engendrar novos estágios é essencial, crucial, à estabilidade sistêmica. É preciso mudar para que a desagregação, o caos, não ocorra. O sistema mantém-se na medida em que se transforma. A instabilidade contamina a estabilidade. A esclerose sistêmica é que evita ou repudia a mudança. Neste caso, a mudança acontece contra as expectativas socialmente aceitas e suplanta qualquer projeto de planejamento. Neste final de século há uma falta de projeto unificador. Isso não é totalmente nocivo, pois significa também que a sociedade rejeita projetos exteriores, prontos. ou. o que ainda é mais verdadeiro, eles são impossíveis. O máximo imaginável e desejável é o acompanhamento participativo. Não há razão para escamotear a relevância do equilíbrio sistêmico. Mas isso jamais se dará se a mudança não estiver incluída.


Setembro de 1990 (O pensamento do fim do século, L&PM)


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