Estado de resiliência

Estado de resiliência

Notícias de um lugar estranho

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    Havia uma estranha capacidade de se renovar. Todos os ditados eram usados com parcimônia, por uma ordem real que determinava moderação em tudo, especialmente no recurso à sabedoria milenar. Então todos se obrigavam a inventar novos provérbios, frases para embalar os sonhos e apostar no futuro. Alguém dizia, o futuro é o que vem depois da tempestade. Não chegava a ser uma grande frase, mas servia para indicar o caminho, a certeza de que nem tudo se perderia na confusão do presente.
    O rei era um homem esquisito que punia notícias falsas, pois ainda tinha quem as criasse e fora localizada uma fábrica desse tipo de produto, com penas que iam de uma semana a dez anos só dizendo a verdade, o que era conferido por uma máquina capaz de identificar mentiras pela coloração do nariz. A ciência descobrira que os mentirosos sofrem se não puderem contar uma mentira ao menos uma vez por semana. Os tempos eram difíceis apesar do empenho da população em lutar contra as agruras. Quanto mais as dificuldades apareciam, mais as pessoas simples revelavam complexas habilidades para superar obstáculos e criar soluções improváveis e belas.
    O reino padecia com os resquícios de outra era, um tempo esquisito em que o sol nascia de noite e morria pelas dez da manhã. O que marcava então dia e noite? Um aparelho inventado para aferir as batidas do coração do tempo, que era visto com um ente especial dotado de sentimentos e oprimido pela sua incapacidade de esquecer. A população podia, se quisesse, recorrer a um comprido que apagava as más lembranças. Muitos, porém, queriam lembrar para não cometer os mesmos erros, convencidos de que o passado saberia ensinar sobre o futuro, ainda que no tempo antigo não tivesse sido assim. Estavam todos, enfim, dispostos a salvar o lugar.
    A mente humana era estudada por equipes multidisciplinares de milhões de pesquisadores do mundo inteiro. Buscava-se entender o mecanismo gerador da mentira e da perversidade. A questão colocada era simples e complexa: por que alguém mente mesmo sabendo que trará prejuízo à coletividade e será descoberto? Acreditava-se que, encontrada a resposta, a humanidade daria um salto para o seu melhor estágio, com os humanos finalmente integrados na natureza sem o antigo orgulho que os fazia querer ser mestres do universo. Com essa mentalidade, se tudo não andava bem era por causa da herança maldita, os milênios de mentira do antropoceno.
    Viver era complicado. O trabalho de restauração envolvia intricadas operações para resgatar formas de existência extintas pelo simples fato de que se queria andar rápido demais. Se acontecesse de alguém ter de recolher comida no lixo, os gestores eram severamente punidos. Não se tolerava oportunismo, corrupção e ganância. Aparelhos operavam em tempo integral para calcular a medida certa de iniciativa individual com interesse coletivo. Nenhum polo deveria neutralizar o outro. O lema que a todos (ou quase) movia era de uma simplicidade brutal: juntos sairemos desta. Faltavam doze anos para o final do século e todos sonhavam muito.

 


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895