Fim de ano

Fim de ano

Não dá para ignorar

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      Há uma mágica que se repete a cada fim de ano: nos corações mais empedernidos, como o meu, pode brotar uma esperança. Ressoa no mais profundo da gente uma canção de fé na renovação. Curioso é que imagens de um passado distante ressurgem para alimentar o futuro. De repente, pelo simples fato de que um ano morre, a vida ganha nova dimensão. É sabido que essa passagem se insere numa continuidade. Mesmo assim, acreditamos na ruptura, na transformação, na metamorfose. Eu me sinto prestes a virar borboleta, talvez o meu grande sonho, embora eu saiba que a vida de uma borboleta é efêmera. A nossa também. Fim de ano dá vontade de viver, de abraçar, de recuperar o tempo perdido, que é muito, ainda mais nestes tempos tristes de pandemia e de espera.

      Eu acreditei muito no Papai Noel. Não resistia até a meia-noite. Deixava minhas havaianas brancas com tiras verdes, as únicas da época, no lado de fora, junto à porta. Acordava cedo e ansioso. Os presentes eram simples, carrinhos pequenos de plástico mole. Eu ficava muito feliz, o mais feliz dos guris de Palomas, Florentina, Madureira e adjacências. Talvez até da Banda Oriental. Uma das maiores tristezas da minha infância foi descobrir que Papai Noel não existia. Por outro lado, fiquei orgulhoso precocemente do esforço dos nossos pais para dar presentes a sete filhos. Foi a primeira vez que tive noção da luta dos adultos para dar alegria às crianças. Tenho saudades daqueles dias de expectativas enormes, presentes modestos e felicidade gigantesca.

      Não temos filhos. Mas Cláudia monta a árvores de Natal e a casa fica alegre, bonita, mais feliz. Quase acredito que deixarei novamente meus chinelos, agora coloridos, no tapete diante da porta para ganhar presentes de estourar o coração de felicidade. Fico nostálgico no fim de ano. Sou como a maioria. Não chego a fazer promessas de mudanças. Já levo uma vida tão comedida que fica difícil prometer grandes alterações. Pretendo caminhar mais (já faço uma caminhada quase diária na Redenção), aumentar o autocontrole para nunca me arrepender de algum estresse ou de uma palavra capaz de magoar alguém. Quero também responder sem agressividade a toda observação que me incomode, especialmente às condescendentes, a coisa que mais detesto. Odeio.

      Na verdade, adoraria me importar menos com isso. O que eu peço ao Papai Noel imaginário no qual ainda acredito? Que me dê paz, saúde (extensivo a quem amo) e elegância. Sim, elegância para argumentar sem deixar passar batido o que me aborrece. Eu creio na força dos argumentos. Aposto tudo na racionalidade. É difícil, porém, praticá-la. Quantas vezes a emoção atropela e tudo se perde! Peço também que minha memória seja preservada para que eu possa lembrar de todas as belezas que li, ouvi, vi. Eu não queria esquecer uma só frase de Tolstói. Borges, Machado de Assis. Peço muito. Como esqueço, releio. Fim de ano é tempo de pensar no tempo e achar tempo para recomeçar. Eu volto a Palomas para beber o futuro nas fontes do meu passado.


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895