Fim de ano romântico

Fim de ano romântico

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Disseram-me, faz alguns anos, numa dessas viradas com direito a fogos de artíficio, que o amor está ultrapassado, que não passa de um vestígio de uma era romântica suplantada pelo mundo pós-industrial.

Disseram-me, enquanto os espumantes corriam soltos e as línguas se liberavam, que as separações se tornaram normais e que só as pessoas desajustadas ou anacrônicas ainda sofrem por causa disso.

Disseram-me, com tons de soberba e ares de entendimento, que as dores de amor são sintomas de outros problemas psicológicos e que só os fracos ou doentes ainda padecem com isso.

Disseram-me que as telenovelas e os filmes de amor são outros resquícios, vestígios arqueológicos de uma era revoluta, explorados pela indústria cultural, para ganhar dinheiro com os pobres de alma.

Disseram-me tanta coisa que me assustei.

Eram doutores que falavam.

Eram especialistas que discursavam.

Hoje, há especialistas para tudo, até para ensinar a caminhar na beira da praia.

Ou para definir a roupa íntima do final do ano.

Eram técnicos que espalhavam dados e estatísticas sobre a mesa.

Um deles, num arroubo, citou a crise da poesia, pobre poesia, sempre em crise, cujos livros, por mais belos e elogiados pelos críticos, encalham nas editoras, como prova da decadência do amor.

Outro falou que o amor era uma marca infantil da fase oral ou coisa que o valha.

Todos, enfim, assinaram o atestado de óbito do amor, sem emoção nem piedade.

Houve um até que mostrou um dado curioso: haveria mais grupos de adoradores de pastelina no orkut – na época o orkut ainda era in e o facebook nem existia ou estava engatinhando – que de adeptos do amor.

Apavorei-me.

Amor, explicou outro ainda, com ar blasé e gel nos cabelos, é coisa de velho.

Os jovens, disse, “ficam”.

Em poucas palavras, o amor seria um resto patético do arcaico no universo tecnológico.

Não me convenci.

Contra os doutos, citei Lupicínio Rodrigues: “Esses moços, pobres moços, ah, se eles soubessem o que eu sei...”

Contra os técnicos, com sua propalada isenção e objetividade acima das ideologias e das escolhas pessoais, invoquei Cartola: “As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”.

Contra os estatísticos, enumerei revistas, fofocas, livros, textos, vidas, obras, tudo mais: só se fala de amor.

Vivemos para o amor, corremos para o amor, queremos vencer para amar e ser amados.

Riram de mim.

Os mais educados apenas sorriram.

Jurei vingança.

Prometi demonstrar que estavam errados.

Citei o que sabia de Freud.

Decretaram que Freud tinha sido mal interpretado.

Lembrei-me de Baudelaire.

Não me venha com poetas, menosprezou o que parecia ser o “chefe”.

Bati em retirada.

Três meses depois, ao amanhecer, no bar da rodoviária, que todos os outros já estavam fechados, encontrei justamente o “chefe”, aquele que parecia considerar o amor como um fóssil.

Podia abraçar a Deca de tão bêbado.

Agarrou-me e, com seu hálito de uísque, desabafou: “Ela me deixou, a vadia. Foi embora com o personal trainer.”

Aqui se faz, aqui se paga!

Em 2011, tornei a encontrar esse cético: estava emocionado com o casamento de Kate e William.

Foi o grande acontecimento do século XXI, disse-me.

Prefiro o amor dos homens comuns, ordinários, respondi.

Mas ela era plebeia, retrucou.

Convidou-me a brindar pela vitória do amor na globalização.

Moral da história: o que faz uma bola na costas de um homem!

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