Futuro do pretérito

Futuro do pretérito

Crônica sobre chegar aos 60

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      Foi de repente que eu percebi. Havia algo errado comigo. Até então eu não havia notado. Quando eu me olhava no espelho, via outra pessoa. Explico: via quem eu tinha sido. Enxergava o meu passado. É engraçado constatar que, ao longo do dia, a gente não se enxerga. Caminho pela cidade pensando que eu ainda sou aquele que fui. Vez ou outra, ao subir uma longa escada ou uma lomba, vem a verdade. Como pode ser que por dentro se permaneça, em princípio, o de sempre? Eu achava que era assim até que me senti vítima de um preconceito: etarismo. Cada escolha que faço agora é creditada à minha idade. Se critico o preço do Uber, mais alto que o dos táxis, sou velho. Se defendo o drible no futebol, sou antigo. Se não consigo gostar de sertanejo universitário, sou muito velho. Sou muito bom com tecnologia, mas se algo falha, sou um velho que mostra a idade.

      Estou consternado. O etarismo e a autoajuda me cercam. Pensei em me proteger escondendo as minhas opiniões. Os jovens atribuíram a conquista da Libertadores da América pelo Palmeiras à ciência do treinador Abel Ferreira. Eu, velho que sou, creditei à vitória ao acaso que fez o bom jogador Andreas Pereira cometer um erro primário e entregar a bola para o gol do time paulista. Velhos como eu, leitores de Tolstói, duvidam da maioria dos nexos causais estabelecidos rapidamente. Tendemos a pensar que fatores muito mais complexos e variados determinam os acontecimentos. Tolstói duvidava até da influência real de Napoleão em batalhas como a de Borodino, na Rússia.

      O conflito de gerações está instalado. Ou aceito o papel de velho simpático, com opiniões excêntricas, ou me faço trucidar se insistir em enfrentar as posições modernas, ou seja, dos jovens. Durante muito tempo fingi não perceber o que acontecia para não passar recibo. Tive um exemplo claro dessa nova realidade quando uma conexão não funcionou para um jovem. O responsável aproximou-se e disse: “O sinal está péssimo”. Quando não funcionou para mim, ouvi: “Eu já lhe ensino”. O etarismo trata os velhos de duas formas: com rispidez ou condescendência. Como, enfim, faço parte de um grupo, passo a ter um lugar de fala, o que nunca tive. Escrevi um romance sobre um homem com Alzheimer, mas como não era eu, não surtiu efeito, ainda que um jovem tenha perguntado se era autobiográfico. Homens de oitenta anos me acham jovem. Os de quarenta me consideram jurássico. Ainda mais que resisto ao estilo jovem de vestir, de falar, de pensar e de viver.

      Não quero me mudar para Portugal. Não chamo salada de mix de folhas verdes. Acho que podcast é rádio gravado e não precisa necessariamente ser feito em estúdio. Considero os humoristas atuais muito sem graça. Num vídeo, só me interessa o que está sendo dito. Amo textão. Acho o Tostão muito melhor comentarista de futebol do que PVC e Mauro César. Tenho ótima relação com meus alunos jovens. Eles me respeitam e eu os admiro pelo interesse, pela inteligência e pela afetuosidade. Fora é que o bicho pega. Prefiro o twitter ao instagram. Acho o tik tok puro besteirol. Não creio que alguém se informe pelas redes sociais, mas por links da mídia convencional nas redes sociais. Sou velho mesmo. Além disso, brigo também com os da minha idade: não quero fazer pilates, odeio esteira, acho roupas de andar no parque ridículas.

Consumismo – Não tenho partido, o que me deixa mal com todos os lados. Sou a favor da democracia, sem qualquer espaço para elogios a ditadores de direita ou esquerda. Nem Cuba, nem Venezuela, nem Chile de Pinochet. O que isso tem a ver com o assunto? Nada. É que me perco em digressões. Só acredito em aposentadoria garantida pelo Estado. Poupança a longa prazo só faz sentido em país sem inflação. O etarismo me vigia mesmo que eu não use aquelas jaquetas de dois lados. Um colega acha que a Cláudia escolhe as minhas roupas. Ignora que eu sou inflexível. Tenho bom gosto e não abro mão de ser adulto. Um famoso comentarista de futebol, que fazia uma espécie de poesia enquanto analisava um gol perdido, disse, quando eu estava começando, que eu era “opiniático”. Acertou. Eu pensava o mesmo dele. Enfim, passou.

      Sim, sou velho. Não atribuo às faixas etárias nenhuma qualidade intrínseca. Só lamento não ter acumulado poder, prestígio e dinheiro para ser um velho rabugento sem o menor constrangimento. Agora entendo os velhos da minha infância. Não tinham mais nada a perder e diziam tudo o que pensavam. Continuo sonhando com um mundo em que nada será feito tomando como critério a idade, a cor da pele, a orientação sexual ou religiosa, essas coisas. Um jovem já me advertiu que a idade será sempre fator de exclusão. Explicou que não se pode jogar futebol profissionalmente aos sessenta anos nem ser presidente da república aos doze. Guri inteligente. Depois de acabar comigo, sorriu e disse:

– O senhor tem futuro!

 


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