Governo e Casamento Sologâmico

Governo e Casamento Sologâmico

Estaria o governo querendo casar-se consigo mesmo?

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 Como diz a sabedoria popular, é melhor ler isto do que não saber ler ou ter problema de visão: “Empresária mineira se casa com ela mesma para celebrar amor-próprio”. Em outros tempos, essa história seria considerada bizarra e não daria manchete em jornal. Hoje, não só recebe chamada de capa como também merece explicação de especialistas. Aprendi algo com a leitura desse troço. Fiquei sabendo que isso recebe o nome de casamento sologâmico. Fiquei mais culto. A justificativa da noiva é inquestionável: "Eu resolvi casar comigo por causa da minha história, de eu ter chegado ao ponto de compreender que, em primeiro lugar, eu sou a pessoa mais importante da minha vida". Espetacular. A vida é capaz de provocar surpresas a cada dia. Surpreende o egocentrismo.

      Um detalhe da cerimônia chama a atenção: “A empresária vai sozinha até o altar e será recebida pela filha. Uma amiga será a celebrante e os votos serão feitos em frente a um espelho no altar, em que vai prometer se amar e respeitar até a eternidade. Os convidados também vão receber espelhos para um voto coletivo de amor-próprio”. Se eu não tivesse lido os ensaios maravilhosos e sofisticados de Gilles Lipovetsky sobre a importância do novo narcisismo como elemento de afirmação, diria tratar-se de mais uma gigantesca besteira de quem precisa desesperadamente encontrar um jeito de aparecer um pouquinho. Nada mais imperativo do que aparecer.

      Gilles caprichou na argumentação: “O narcisismo hipermoderno não é o narcisismo do mito grego. Neste, Narciso ama a sua imagem. No narcisismo estético há contemplação. Narciso passivamente se contempla. O narcisismo hipermoderno é produtivo. Não paramos de nos produzir por meio de exercícios e limitações. Há uma construção de si. O narciso de hoje não se ama. Temos práticas narcisistas, como a obsessão pelo corpo, mas os narcisistas não se amam. Todas as mulheres se acham gordas. Não amam seus corpos. Trata-se de um narcisismo de ódio. Odeio meu corpo porque ele envelhece, degrada-se e quero impedir que isso aconteça. Quero permanecer jovem, belo e em uma boa saúde. Os psicanalistas me criticaram dizendo que usei o termo narcisismo de outra maneira que Freud. Para mim, é uma imagem, não um conceito, uma gestão de si, sem fim. Meninas de dez anos fazem regime. Pessoas de 70 ou 75 anos fazem plástica para permanecer sedutoras. A medicalização da sociedade também é um fator desse tipo de narcisismo”. E agora?

      O autocasamento será uma nova etapa do narcisismo? Um narcisismo pós-hipermoderno? Vai aparecer um leitor para dizer que não entendeu, que escrevo difícil. Serei narcisista: ninguém escreve mais claro do que eu. Explico tudo. Se cito um nome de filósofo, digo o suficiente para o leitor não perder tempo indo ao google. Se o pensador é francês, isso não tem a menor importância, exceto para quem tem bronca de francês. O pensamento nada tem a ver com nacionalidade, salvo em países que não cultivam a reflexão, entre os quais o Brasil corre o risco de ser incluído. O leitor se casaria consigo? Pediria o divórcio em seguida? Eu confesso que não vivo sem mim. Amor eterno. Absoluto. Mais absoluto do que o meu amor por mim é amor dos governos por si mesmos. Estaria o governo Bolsonaro, na sua radicalização, querendo casar-se consigo diante de um espelho complacente? Estaria o governo respondendo a si mesmo com paixão e deslumbraamento:

– Existe algum governo mais popular do que o meu?

– Não, meu amor.

– Existe um governo mais democrático do que o meu?

– Não, meu senhor.

– Existe algum governo mais realista do que o meu?

– Não, meu rei.

 

 

 

 


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