Guerra e paz

Guerra e paz

O que fazer da vida?

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    Dificilmente se fará romance mais belo e completo. É por isso que releio meus quatro volumes de “Guerra e paz”. Tolstói, como a maioria dos escritores do século XIX, escrevia para ser lido. Contava uma história, ou muitas, alternava descrição de acontecimentos, prosa poética e interpretações da “alma” humana. O conjunto permanece extremamente atual. Basta mudar músicas, conflitos grandiosos de época, cenários e roupas da moda. O essencial se mantém: choque de gerações, ambições não realizadas, paixões, rancores, jogo político, a força do dinheiro e a busca por uma razão de ser. A pergunta que norteia a história, sem ser dita, é esta: o que fazer da vida?
    Pedro, herdeiro de uma fortuna, casado com a bela Helena, não sabe o que fazer da sua. Em determinado momento, o narrador resume: “Por vezes lembrava-se de lhe terem contado que os soldados nos postos avançados, sob o fogo do inimigo, tratam de arranjar uma ocupação, a fim de esquecer mais facilmente o perigo. E todos os homens lhe pareciam então agir como esses soldados: escapavam ã vida uns pela ambição, outros pelo jogo, outros pelas mulheres, outros pelas diversões, outros pelos cavalos, outros pela caça, outros pelo vinho, estes elaborando leis e aqueles ocupando-se com negócios públicos”.
    Assim é sempre. Em maioria, escapamos do “perigo” pelo trabalho. Precisamos estar sempre ocupados para fugir do abismo. Não estou falando, claro, do trabalho como garantia de subsistência. Mas depois disso. Outros fazem do futebol a razão de existir. Outros, ainda, desse grande jogo que é a política. Dá uma sensação de importância, agenda cheia, interesses em disputa e uma eleição a cada quatro anos. Tudo faz sentido. As redes sociais são a grande ocupação de muitos de nós agora. Elas preenchem esse imenso tempo vazio que nos perturba. Quando tudo caiu, muita gente ficou desesperada. A vida reaparecia.
    A modernidade passou a tratar a literatura como questão essencialmente de linguagem. É preciso desmontar as palavras, inventar outra ordem para as frases, explorar neologismos, implodir a expressão dita linear. Tenho a impressão de que todas as alternativas são boas. Basta ter talento para o negócio. O problema é que isso é raro. Quando me perguntam, isso acontece, Tolstói ou Joyce? Respondo para me mostrar complexo: os dois. Na solidão, fico com o primeiro. Releio também o segundo. Não tenho o dinheiro de Pedro. Só a sua dúvida: o que fazer da vida? Ele procurou uma saída. Pertencer a alguma coisa. Todos nós fazemos isso. Por isso entramos em clubes, associações, estruturas, enfim, que nos acolham e pelas quais passamos a viver.
    Calma, leitor, não vou cortar os pulsos. Só estou dizendo que o maravilhoso escritor russo capturou o principal. Como “Guerra e paz” é o meu metro, fica difícil ser entusiasta do muito do que veio depois. A minha sensibilidade se aguça com passagens como esta: “Descobria-se agora uma floresta encantada de confusas sombras negras, cintilações de diamante, uma enfiada de degraus de mármore, e os telhados prateados duma morada mágica; ouviam-se latidos de animais”. Estamos sempre entre guerra e paz no dia a dia. Lutamos com o sentido da vida.

 


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