Horror em Paraisópolis

Horror em Paraisópolis

Crônica de uma tragédia inominável

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Há algo de muito triste sob o céu da pátria amada, essa pátria idolatrada, salve, salve, ou, ao menos, salve-se quem puder, quem escapar. Há algo de pavoroso ao sol da Pauliceia Desvairada. Mas não é só lá. É por toda parte. Há algo de assustador à luz do berço esplêndido. Em São Paulo, a polícia invade um baile funk e provoca a morte de nove jovens. No Rio de Janeiro, bombeiros reagem à gravação de cenas de um filme chamando uma atriz de “negra, gorda e fdp”.

      As notícias dão conta de que a ação na enorme favela paulistana de Paraisópolis foi retaliação pela morte de um policial. Os relatos de moradores indicam algo de tenebroso no solo da pátria, mãe gentil: “O músico Marcos Forlan, o MC Sacana, conta que foi abordado por dois policiais, há duas semanas, quando entrava num supermercado de camiseta e chinelo. ‘Eles perguntaram o que eu fazia e eu fui falando. Quando eu falei que era ator e MC, eles já me ameaçaram naquele tom: 'MC também morre de vez em quando'’, conta. Segundo o músico, os policiais deixavam claro que sua atitude era uma vingança contra a favela por causa da morte do colega. ‘A polícia é assim: quando morre um policial, a polícia toda para para resolver isso, mas quando morre um favelado, nem liga’”.

É o que se lê na imprensa de São Paulo.

      Há algo de podre na república tropical da gentileza, da descontração e da informalidade. Há algo de repugnante em manifestações que pipocam sugerindo que “gente de bem” não frequenta baile funk. Brasil, Brasil, mostra a tua alma, revela os teus fantasmas. O que se vê? Um desfile de horrores em praça pública. Bombeiros que rejeitam a dança de atores num filme gravado em quartel como coisa de “viado”. Preconceitos que ricocheteiam como balas perdidas. Uma convulsão de sentimentos repulsivos. Uma mãe que urra: “Meu filho foi assassinado”.

O filho dela só tinha 16 anos de idade.

      Morreu pisoteado enquanto a polícia batia no gado humano encurralado num brete urbano, uma viela com uma única saída: o desespero. Outra vítima: um menino de 14 anos. O que eles buscavam no “Batidão da 17”? Alegria, festa, vibração, compartilhamento, emoção. Parafraseando o poeta Gregório de Mattos Guerra, o Boca do Inferno, triste Brasil, ó quão discriminatório. A vista do alto da favela de Paraisópolis é um concentrado desse gigantesco Brasil desigual.

      Há algo de inominável no que se vê, no que não se vê, no que só se pode imaginar. O que se percebe em meio aos gritos de indignação: falha total no sistema, descontrole das ditas autoridades, falta de treinamento mais completo, racionalidade obliterada, improvisação, vingança, coisas que não condizem com a ideia de disciplina, ordem e zelo. As imagens falam sozinhas. Falam muito. Gritam. Alguma coisa está fora da ordem? E se a ordem for essa mesma? E se a ordem for essa desordem que ceifa adolescentes e arranca frases grandiloquentes de quem se espanta, mas nada pode fazer? Há algo de hediondo nesta página da história que para muitos jamais passará de um mísero rodapé.

 


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