Lutas midiáticas

Lutas midiáticas

Mutações espetaculares

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    Adolescente, eu via disputas de luta livre no ginásio Irajá, em Santana do Livramento. Achava que era tudo verdade. Sofria cada golpe. O simulacro consiste numa representação de algo que já não existe ou numa cópia imperfeita do existente capaz de obter mais interesse do que a realidade. O velho boxe não existe mais. A luta livre é uma página das mitologias do passado. O MMA bateu no teto. Surgiu um simulacro: a luta que não é, tipo Anderson Silva e Tito Ortiz, Vitor Belfort (44 anos) e Evander Holyfield (58). Tudo comentando ao vivo por Donald Trump. Midiatização pura. Conteúdo original zero.
    A nova mitologia teve seu momento inaugural com Mike Tyson e Roy Jones Jr, em novembro de 2020.  Outro pico da mesma noite foi o confronto entre o youtuber Jake Paul e o jogador de basquete e ex-NBA Nate Robinson. A única realidade é o dinheiro: pode-se ganhar dez milhões de dólares com essas verdadeiras falsas lutas. A audiência em pay-per-view também excede qualquer simulação. O simulacro substitui a realidade. Em 2019, em Colônia, no Uruguai, fomos ver uma lenda do boxe sul-americano: Maravilla Martinez. Ele só subiu ao ringue depois de intermináveis horas de espera. Era uma “luta de demonstração”. Simulacro de algo que, obviamente, não mais existia: a sua capacidade de lutar. Ver no ringue um quase ancião, como Holyfield, porém, alimenta a fome de lendas e mitos que retornam como fantasmas.
    Essa reconversão permite também a volta de quem havia chegado ao fim, como Anderson Silva, num eterno recomeço do superado. O mito, como simulacro, nunca morre. O boxe, como as touradas, assume ares de vestígio de um tempo cru. Nas olímpiadas, a contestação é frontal. Por que premiar a capacidade de esmurrar a cabeça do adversário? Defensores e críticos se enfrentam o tempo todo. Não é esse o ponto aqui. Roland Barthes dizia que o “mito é uma fala”. O que ele diz? O que se quer ouvir. Barthes é um mito do pensamento da grande época, aquele em que Jean-Paul Sartre era o intelectual dos intelectuais, aquele que havia recusado, em 14 linhas, um prêmio Nobel da literatura. Segundo Barthes, que escrevia sobre a vida real, “a virtude do catch é a de ser um espetáculo excessivo”. Ainda vale.
    Barthes: “A função do lutador de catch não é ganhar, mas executar os gestos que se esperam dele”. Qual o excesso que o “novo catch” exibe? O da passagem do tempo, da decomposição das forças, a luta contra o próprio corpo. Maravilla Martinez, em Colônia, executou em câmera lenta os gestos que dele eram esperados. Hollyfield não teve tempo para isso. Estava lá para lembrar quem fora. Barthes: “O que se oferece ao público é o grande espetáculo da Dor, da Derrota, e da Justiça”. A dor da derrota (in)justa para o tempo. Uma segunda oportunidade como espetáculo puro para responder à pergunta recorrente: onde anda? O público quer mitos, espetáculo e simulacros. Vive na pós-verdade. Midiático é aquilo que se dá ver como ilusão. Tyson de volta ao ringue vale uma alegoria. O sonho dos organizadores é ter uma luta entre Donald Trump e um Muhammad Ali, que já morreu.
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    Abriram a caixa de Pandora (na mitologia, a que tudo dá – ou promete – e que tudo tira): só saiu banqueiro, ditador, político e celebridade, etc.

 


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