Metáforas que mudam com o tempo

Metáforas que mudam com o tempo

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Quem passou pelas mãos de um professor de filosofia não esquece as maluquices de Diógenes, o Cínico. Homem de hábitos singulares, pretendia que o fundamental na existência é o repúdio à riqueza e o desprendimento em relação às convenções sociais. Coerente, decidiu morar dentro de um tonel.

Uma parte considerável da população brasileira faz praticamente o mesmo, com variações mais ou menos criativas, sem precisar ou conseguir sustentar isso filosoficamente.

Diógenes ensinava o que a miséria impõe. Não deixou de ser um tipo curioso, interessante e com tiradas de espírito geniais. É famosa a sua caminhada com uma lâmpada acesa sob a luz do sol. Ao ser interrogado a respeito do estranho passeio, respondeu enigmaticamente: « Procuro um homem ». Os milhões de famélicos dos trópicos podem atualizar a frase: « Procuro um carro », « Procuro um banco », « Procuro um projeto de salvação dos pobres » ou, muito mais simples, « Procuro um emprego ».

Melhor não confundir os tempos. Diógenes vivia para a filosofia. Os miseráveis de hoje filosofam para sobreviver. O grego fazia as suas escolhas. Os excluídos oscilam entre a crença que o destino os escolheu para o martírio e a inacraditável resistência que os faz ainda assim encontrar momentos de felicidade.

Mesmo com a luz de um holofote, em todo caso, continua difícil finalizar a busca de Diógenes. O pensador da escola cínica conheceu o sofrimento. Foi capturado por piratas e vendido como escravo a um milionário de Corinto, que lhe devolveu a liberdade. A filosofia de Diógenes condicionou a sua trajetória ou resultou desta? Eis o tipo de questão que termina em simplificações. Diógenes, um ser altamente complexo, acreditava na potência de sua inteligência e, submetido a determinadas condições históricas, padeceu as dores da sua época.

A melhor história de Diógenes é a do encontro que teve com Alexandre, o Grande. O poderoso dignou-se a ir vê-lo em Corinto. Prestativo, Alexandre quis saber se o outro, aparentemente em situação de infelicidade e necessidade, desejava algumas coisa. Diógenes respondeu sem vacilar: « Sim, que te afastes um pouco, pois estás encobrindo o sol ».

Ah, uma sacada dessas vale a posteridade. Ao ver o sol, na primavera, cada homem (dado que exista um) deveria reverenciá-lo como a um deus. Por que rezar em igrejas sombrias quando se pode fechar os olhos e sentir a carícia divina na pele. Estavam certos os índios que tinham no sol um ser superior. Diógenes, porém, era despreendido e desfrutava dos raios de sol, desde que nenhum corpo estranho se interpusesse entre ele e a fonte de prazer, sem a preocupação do endeusamento.

A filosofia pode ser simples, bela e divertida. É verdade que na antigüidade, quando muito ainda se ignorava, a sabedoria parecia mais densa e aberta à imaginação. Talvez houvesse mais poesia e menos discursos empolados. Talvez não. Sempre se poderá descobrir a poética intrínseca dos textos de Kant. Basta usar a própria imaginação.

Cínico, Diógenes estava apto a manejar uma categoria que passou à História como mais característica das posturas epicuristas e estóicas: a ataraxia. Um estado da alma que nada consegue inquietar, perturbar, desestabilizar. A perspectiva estóica passa por um preço elevado: a neutralização das paixões. Os estóicos pretendiam atingir essa indiferença saudável pela fruição de prazeres tranqüilos. Em teoria...

As tempestades da paixão fornecem o tempero da vida. O estoicismo, claro, opunha-se à destruição da existência em nome de obsessões inúteis: a fortuna, o poder, o comando, etc. Melhor aproveitar as delícias da natureza. Espíritos práticos deixarão de lado as diferenças entre estóicos, cínicos e epicuristas e, voltando a Diógenes, interrogarão com cinismo (sentido trivial): pode-se sentir prazer morando dentro de um tonel?

Mentes politizadas irão além: « Pregar que a felicidade possa ser desfrutada mesmo quando se habita uma barril significa legitimar as desigualdades do mundo contemporâneo, as favelas brasileiras, as classes, castas e demais hierarquias ». Angústias válidas para contextos diversos. O apogeu de um sistema sócio-econômico selvagem não seria atingido, quem sabe, se a filosofia (a mentalidade de base) que impregna uma era não lhe servisse de alicerce, sendo por sua vez reforçada pelo mundo social em construção.

Se Diógenes renascesse no Brasil atual, sempre rápido de raciocínio, independente e provocador, sem o que já não seria Diógenes, daria um volta pelo país de Romário, pediria à multidão que se afastasse um pouco, numa praia carioca, para comer com os olhos uma morena espetacular seminua e, com um risinho infantil, diria de repente, com um copo de caipirinha na mão:

- Não sejam cínicos...

(1995)

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