Mianmar, eu sou você amanhã

Mianmar, eu sou você amanhã

"Democracia" tutelada por militares

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      Eu posso ser você amanhã. É o que parece dizer Mianmar ao mundo. Povo que não votar direito, vai preso pro quartel. Se quem manda não ganha, quem ganha não leva. Avante, eleitores, para trás. Bloqueia-se a internet, derrubam-se as redes sociais, fecha-se o país ao mundo, acaba a festa, rotulada de anarquia. Para salvar a nação do suposto caos, adota-se o caos organizado pelos que sabem marchar de passo certo. A “lei e a ordem” exigem medidas extraordinárias e conhecidas.

Mianmar é a antiga Birmânia. Libertou-se da Inglaterra em 1948. Foi socialista de 1962 a 1988. Esteve sob o tacão de outra ditadura militar de 1988 a 2011. De lá para cá, passou a viver uma democracia “tutelada” de acordo com a ideia de que os militares dizem se uma nação viverá numa democracia ou numa ditadura. No caso, por concessão dos generais “esclarecidos”, uma democracia de acordo com a noção de liberdade dos portadores das armas. Em 2008, adotou-se uma constituição feita sob medida para o pensamento fardado, com 25% dos lugares no parlamento reservados aos “democratas” militares. As forças armadas têm a possibilidade de decretar “emergência nacional” e intervir no jogo para salvar a nação de esfacelamento e ruptura.

      Não pode ser presidente de Mianmar quem tiver filhos com estrangeiros. Aung San Suu Kyi, prêmio Nobel da Paz de 1991, defensora do direitos humanos e líder mais popular do país, tem esse grave defeito. Isso é o que se pode chamar de nacionalismo de alcova. Em novembro de 2020, o povo de Mianmar foi às urnas. Os militares tomaram uma surra histórica. Despeitados, fizeram o que Donald Trump sonhou: denunciaram, sem provas, fraude nas eleições. Há poucos dias, deram um golpe de Estado. Nos Estados Unidos, a democracia sólida triunfou. Em Mianmar, o militarismo robusto continua dando as cartas. A mensagem parece clara: se as urnas não confirmam as expectativas de quem tem a força, não há dúvida: fraude. A partir daí tudo se torna possível.

      Os militares de Mianmar não contavam com um inconveniente: o povo não está convencido de que houve fraude e toma as ruas para protestar. Afinal, não pode jogar fora 83% dos votos. O povo costuma ser um inconveniente no caminho dos tanques. Chega uma hora que o medo acaba e nada detém a massa. Assim terminam as ditaduras. Se os militares mandam derrubar a internet, usuários recorrem a VPNs, escondendo a origem do acesso, e driblam parte do controle imposto. Em matéria de internet, hackers podem dar de goleada em sargentos da ordem. Como não pode ser eleita presidente, Aung San Suu Kyi governava o país na condição de conselheira de Estado. Ela foi presa sob a gravíssima acusação de ter importado ilegalmente seis walkie-talkies.

      A população de Mianmar quer democracia. Os militares alegam que liberdade implica responsabilidade, algo que só eles seriam capazes de compreender no momento. Quem tem mede de virar Mianmar? Nas ditaduras e nos golpes hipermodernos a primeira vítima é a prova. Passa o tempo, passa tudo, só não passa essa certeza de que militares continuam achando que devem governar pela força das armas, que podem ajudar a escrever constituições dentro do figurino. Até o povo se enfurecer.

 


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