Minha playlist do momento

Minha playlist do momento

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Um homem sem playlist está fora da onda. É velho. Ser velho é resistir à tecnologia. O jovem moderno considera toda mudança como natural e naturalmente melhor do que aquilo que deseja deixar para trás. Creio que a principal característica do jovem é esse desprezo pelo modo de fazer do outro. A birra com franceses é essa: franceses tendem a repetir o que funcionou. Americanos tendem a mudar. A cultura anglo-saxã adora a mudança. Funciona à base da novidade. O capitalismo precisa da obsolescência programada. Nada que perdura dá muito lucro.

Eu tenho minha playlist. Ela se fez naturalmente. Um rastro na terra molhada por onde passo todos os dias enterrando meus pés nos gostos e hábitos que me definem sem apelação. De que adiantaria reclamar? Nada se pode contra a força das estruturas. Elas sempre vencem impondo-nos sua lógica e dinâmica. Que marcas encontro? Cesaria Evora, Nina Simone, João Gilberto, Buena Vista Social Club, Nana Caymmi, Stacey Kent, Belchior, Mercedes Sosa, Astrud Gilberto, Chet Baker, Charlie Parker, Gal Costa, Miles Davis, Bob Dylan, Chico Buarque. Foi isso que ouvi no último mês, no último ano, última vida.

Tem mais, claro. Tem muito mais da Bossa Nova, de samba e jazz. Tem um rastro clássico em trilhas sombreadas, que entranham no passado, por Beethoven, Bach, Mozart, Rachmaninoff, Vivaldi e até Chopin. Nas últimas semanas, porém, tem sido obstinadamente Cesaria Evora, Mercedes Sosa, Nina Simone e Stacey Kent. Por quê? Como posso saber? Que pergunta mais cretina. Se soubesse, não escrevia. É uma questão de vozes, de entonações, de interpretações, mas também de letras, de conteúdos, de imaginários. Cesaria parece entoar uma ladainha que vai enfeitiçando até fazer adormecer ou sonhar. Confesso que me agarro a cada palavra como se balançasse num barco sob o luar.

Com Mercedes Sosa é mais trágico. Meio uma punhalada. Ultimamente tem sido uma obsessão por “todo cambia”:  “Lo que cambió ayer/Tendrá que cambiar mañana/Así como cambio yo/En esta tierra lejana”. Tudo muda até não podermos mais mudar. O homem de hoje desespera-se quando não pode mais deixar de ser o que sempre foi. A imposição da mudança gera estresse. Não poder mudar ou ter a obrigação de mudar enlouquece. É uma maneira de dizer. Tenho mudado pouco nas minhas paixões musicais. Gosto de quase tudo, menos de sertanejo universitário e de pagode estilo Thiaguinho, que não é samba. Falta uma força poética nesse registro.

O funk tem uma força de periferia.

Gosto do gemido ou do sussurro de Stacey, da voz cristalina da Gal, da aspereza de Nina, da rouquidão da Nana, do tom de oração despejada por Bob Dylan e da filosofia de Belchior, o homem que decidiu mudar contra as mudanças caras ao mercado e ao sistema e nunca mais voltou do autoexílio. Já escrevi sobre playlist. Falei de outras músicas e nomes. Alguns se repetem. Minhas escolhas são tão eternas quanto minhas paixões. Duram o tempo de uma reflexão existencial. Tenho minha playlist. Pertenço ao meu tempo. Um tempo no qual não me reconheço. Nada de novo. Sempre me senti deslocado. Como numa canção.

 

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