Miragem, uma utopia na Serra

Miragem, uma utopia na Serra

Livraria, em São Francisco de Paula, exalta a cultura

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Há muito eu ouvia falar da livraria Miragem. Queria conhecê-la. Aí o Paulo Heineck, homem de muitas ideias, bolou um evento e me convidou. A Miragem fica em São Francisco de Paula, na serra gaúcha. A dona é a Luciana, uma mulher corajosa e determinada, que defende o meio ambiente, os animais e os livros. A Miragem tem dois mil quadrados, três andares, com direito a galpão crioulo interno, espaço infantil, um salão com fotos históricas da cidade e livros, muitos livros de qualidade, de Paul Auster a Zygmunt Bauman. Nesse tom.

      O evento bolado pelo Paulo foi o mais legítimo sarau cultural. Fomos eu, como palestrante, e o Luciano Leães, músico, pianista dos bons, com 25 anos de carreira, craque em jazz e blues, que todo ano faz apresentações em New Orleans, nos Estados Unidos. O Luciano é neto do Maneco Leães, que foi piloto de avião do João Goulart, homem de muitas histórias e de grandes serviços prestados em momentos de crise. Subimos para São Chico falando de música e da Semana de Arte Moderna de 1922, pois estou lendo uma biografia de Mário de Andrade, escrita por Jason Tércio. No evento, falei do meu livro “Ser feliz é tudo que se quer”. Luciano Leães arrasou ao piano. E fomos muito felizes por duas horas. Ainda teve o jantar no restaurante Castelli. O dono assistiu ao nosso evento. Depois, assumiu seu posto e mostrou os clássicos da sua casa: filé ao molho de pimenta e ao molho surpresa. Isso mesmo, molho surpresa. Uma receita de família.

      A noite estava gelada. Fazia seis graus do lado de fora. Ventava. Encheu de gente. Tinha gente de São Francisco de Paula, de Igrejinha, de Taquara e até de Porto Alegre. Meus livros, vários títulos, ganharam vitrines especiais. Coisa de aquecer o coração. Eu poderia ter ficado lá folheando os livros, contemplando aquelas lindas fotos antigas, conversando com as pessoas, saindo à rua para sentir o vento cortante ou simplesmente ouvindo o Luciano Leães arrancar sons incríveis e frenéticos do piano com o ar solene de todo piano e a magia que emana quando um pianista talentoso toca. Show.

      A Luciana, dona da Miragem, é incansável e resistente. Manter uma grande livraria numa pequena cidade é para os fortes. Uma das suas lutas é contra a destruição dos campos de cima da Serra pelos “interesses econômicos”. Outra, contra a matança de javalis com cachorros, método bárbaro que resulta em animais estraçalhados. Passar algum tempo na Miragem produz uma deliciosa sensação de deslocamento. A gente sai do ambiente nebuloso atual e entra na máquina fluida das ideias. Quando espicha a mão, encontra uma obra-prima. Não é livraria de best-sellers, mas de autores de alto nível.

      Paulo me pediu para sugerir autores capazes de ajudar a compreender o nosso tempo. Não vacilei, sugeri de Edgar Morin a Michel Houellebecq. Descemos para Porto Alegre realizados. Eu tinha na mente as imagens da livraria Miragem, com seu ambiente inusitado e mágico, e nos ouvidos os sons do piano do Luciano. Ser feliz é tudo que ser quer. Não se é todo tempo. Importante é não perder ocasiões.

 


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