Não quero ganhar na megassena

Não quero ganhar na megassena

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Ao azar da sorte

Repito.

Cada um com as suas manias.

Continuo o mesmo: não jogo no bicho, não pego no bicho, por supuesto, não aposto na megassena, não entro em rifa, não faço fé em jogo de azar, não arrisco a sorte numa fezinha qualquer, não atiro um gole no chão para o santo, não acendo vela para o Internacional ganhar, não quero ficar milionário de um dia para outro.

O ano de 2011 não mudou as minhas convicções.

Mas, calma, gosto muito de mulher. Da minha, claro.

Cada louco com o seu destino: não gostaria de ficar rico pelo atalho. Já me aconteceu de acordar molhado de suor por causa de um pesadelo: eu ganhava milhões na loteria, ficava rico de doer e não precisava mais trabalhar. Tinha dinheiro para tudo, nada me custava, tempo livre em demasia e falta de ocupação.

Que horror!

Eu queria ganhar muito dinheiro trabalhando. Sou um caso de internação imediata.

Entendo a obsessão de milhões de brasileiros pela mega-sena. Não tendo outro saída, o jeito é arriscar no improvável para esquecer o muito provável. A megassena é uma vacina ineficaz do futuro contra o presente.

No fundo, isso me dá aquela sensação de que é um atestado de fracasso de uma nação. Quando o país não garante a expectativa de ascensão social pelo trabalho, resta jogar na loteria. Os números de apostas da megassena são para mim uma prova de que o Brasil continua maltratando a sua gente. Não contribuo. Resisto solitário.

Tem aqueles que ganham a vida razoavelmente, mas, ainda assim, sonham com os milhões da megassena.

Não gostam do que fazem ou, mesmo fazendo com certo gosto, repetem gestos mecânicos enquanto sonham com a liberdade, praia, sol, viagens, mulheres, homens e muita festa.

Posso ser radical e falar assim com ar de dono da verdade: o cara que joga na loteria para mim avisa que não leva fé em mais nada nem em si mesmo. Fico desconfiado. Acho que o sujeito, na primeira que der, vai sair pela tangente, deixar cair a peteca, pegar o desvio e o boné e abandonar o barco.

Sou como aquela música quase brega, eu “tenho fé é na rapaziada que não foge da luta e enfrenta o leão”

Que mais o tipo poderia fazer?

Atolado na falta de perspectiva, sonha com a alforria. A megassena é um sintoma, o sinal de que nos sentimos escravos, presos a atividades que não proporcionam prazer, obrigados a vender trabalho por migalhas, órfãos de sociedades que não se preocupam mais em prometer o paraíso na terra. Sempre penso que os jornais deviam publicar manchetes diárias de capa assim: A Miséria Continua.

Nada!

A mídia fecha os olhos para as favelas, banalizadas, e divulga o inusitado: Favelado Ganha na Mega-Sena.

Fico aborrecido.

Imagino uma sociedade em que ninguém, mesmo não sendo rico, veria razão para jogar em loterias.

Imagino uma nação em que cada um se sentiria feliz exercendo a sua profissão e não gostaria de perdê-la por dinheiro algum. Cada vez que alguém confere os números da mega-sena na minha frente, soltando o tradicional “não foi desta vez”, eu sou tomado de uma estranha melancolia.

Uma voz dentro de mim sussurra como se eu fosse um positivista empedernido: “Pobre dessa pessoa, não está feliz com o que faz, com o que vive, com o que tem, com o que lhe cabe.”

Aí me apresso em relativizar: se bem não faz, mal não faz.

Mas não consigo apagar a impressão de que tem algo errado.

Sou uma espécie de Policarpo Quaresma, aquele personagem nacionalista ao extremo de Lima Barreto, que pretendia salvar o Brasil das cultura alienígenas. Defendo a língua portuguesa, mesmo na ciência, contra a hegemonia ideológica do inglês. Coisas assim. Aí vem uma lufada do meu passado antropológico e me diz que as apostas são estratégias de resistência de um povo explorado pelas suas elites.

Nada, portanto, mais legítimo e salutar.

Respiro aliviado.

Mas já um grilo me diz que era exatamente isso que eu estava denunciando antes e que continuamos na mesma.

Tem dias em que vejo um jogo de futebol e fico abismado com a paixão dos brasileiros por esse esporte. Acompanho o desespero ou a excitação de um torcedor com a derrota do seu time e penso que um clube de futebol pode ser tudo na vida de alguém. Por um segundo, a beleza do futebol, que me envolve e apaixona, é encoberta por uma névoa de tristeza: puxa, essa gente só tem um time de futebol para sublimar as suas energias, depositar o seu entusiasmo, dividir a sua capacidade de sofrer, revelar a sua grande vontade de doação e de amor.

Triste povo, entregue aos azares da sorte.

Maravilhoso povo, capaz de inventar maneiras de continuar vibrando.

Pelo jeito, continuarei pensando assim em 2012.

Salvo se, de repente, entrar na lotérica e...

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