Na calada da tarde

Na calada da tarde

Sobre arte, memória e vida

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    Era tarde para ser jovem e cedo demais para ser idoso. Assim ele pensava enquanto procurava um vinil de Belchior e explicava para o neto que o artista fora um dos mais importante de certa época. O menino parecia estremecer cada vez que ouvia o avô usar a palavra época. Não era, porém, um estremecimento, mas simplesmente um jogo de corpo enquanto brincava com o seu celular. A tarde era puro silêncio, algo espesso como uma calda, um rastro de vida num oceano de lembranças. Era sobre querer mais que falava, sobre essa ânsia de começar de novo depois de fazer o balanço das coisas escritas a lápis.
    Precisava mostrar um lápis que guardava como recordação para o rapaz entender. Fazia o mesmo com uma máquina de escrever, com um livro impresso e com um relógio do pulso. Sabia que a juventude é um estado de impaciência que se estabiliza com o tempo ou que se perde numa curva por só crer nas linhas retas. Então contemplava a luz do cair da tarde como quem observa o pássaro que alça o voo. O neto não se comovia com a música de Belchior nem se interessava pelo vinil. Via essas coisas como vestígios de um tempo improvável. Comentava:
– Como vocês conseguiam viver assim!
    Não entendia a emoção do avô escutando músicas tristes. Só aceitava da arte o que servisse para alegrar as pessoas. Dizia que a geração do avô era viciada em cultuar a tristeza. Não se podia falar em conflito de geração entre eles por uma razão simples: não havia conflito. Quase não se comunicavam embora tirassem alguns minutos por dia para conversar. As palavras tinham sentidos diferentes para eles e pareciam raspar em superfícies de vidro até se desmanchar como bolhas de sabão. O neto achava a velhice algo estranho. Dividia os idosos em dois grupos: os que lembravam demais e os que perdiam a memória.
    Se o menino se esvaía em risos, o avô acordava no meio da tarde sentindo a perseguição dos anos, uma rede de números e de fatos que não o deixavam mais dormir. Precisava organizar tudo na mente para estar pronto. Tentava explicar que sentia a velhice como uma caixa de guardados onde cada peça se movia sem que fosse possível arquivá-las para sempre. Passava dias colocando tudo em ordem e, de repente, uma lembrança desarrumava tudo, exigindo um esforço de memória impossível. Só conseguia ter acesso a esse tempo cristalizado quando ouvia certas canções. Então tudo se incendiava e a tarde caía como o verão.
    O neto já ganhava a vida como piloto de drones e não se importava com o que fora tão caro à geração do avô: futebol, política e poesia. Era um jovem prático, sem qualquer dúvida, mas também sem ostentar certezas. Sensível, chegava a entender o gosto do avô por poemas, assim como compreendia a paixão dele por futebol, mas havia calculado as variações possíveis de jogadas e de combinações poéticas e considerava essas duas expressões culturais superadas. Dizia assim:
– Futebol até pode ser interessante, mas teria de mudar tudo.
Um lugar que não existe – Corpo e mente do avô eram controlados a distância por um sistema de monitoração capaz de repor em segundos qualquer substância necessária à manutenção do seu equilíbrio orgânico. Aplicativos informavam o tempo de vida restante. Por uma sensibilidade de outro tempo, o avô preferia ignorar esse dado. Pretendiam partir juntos para o local de nascimento do avô. O neto estava pronto para a viagem. O velho temia uma desilusão. Pressentia que a geografia dos afetos consolida lugares que só existem no imaginário de quem os conheceu. Assim passavam as tardes suaves.
    O neto jogava. O avô recordava. O primeiro queria gravar o que o outro dizia para quando, talvez, ele não se lembrasse mais de coisa alguma. Quando chovia, o homem emocionava-se. A água deslizava sobre as grandes janelas envidraçadas. Ele apertava um botão que acionava um mecanismo capaz de liberar prontamente um cheiro de terra molhada. Os olhos do avô enchiam-se de novas velhas recordações. O neto sorria. Como lhe pareciam estranhos os hábitos do avô. Como podia ser tão sentimental. Acontecia de parar um jogo para lançar uma pergunta:
– Do que se lembra quando sente cheiro de terra molhada, vô?
– Dos pessegueiros carregados.
    Era essa lógica que surpreendia o guri. Que relação poderia haver entre pessegueiros carregados e cheiro de terra molhada? Aos amigos, explicava que o avô pertencia a uma geração – entendia o termo no sentido aplicado aos computadores e celulares – anterior ao controle da subjetividade. Era um remanescente da era dos sentimentos. Usava palavras cujos sentidos já não encontravam ressonância em realidades materiais: saudade, nostalgia, poética, melancolia, crônica. Na calada de uma tarde o avô fez uma pergunta esquisita:
– O que é vida, meu neto?
– Homeostase, vô.
    O sol queimava o rio por trás dos edifícios como uma “bomba” colorida. A noite seria fresca e terna como um afeto de mãe. Na televisão rodava um episódio da série Round 6, temporada 1007. Na vitrola, o vinil girava soltando suspiros. Belchior repetia:
– Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

 


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