Na parede da memória

Na parede da memória

Um conto sobre a emergência do passado

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      Você se lembra do salão oval, da banda tocando loucamente as marchinhas de sempre, dos trenzinhos tão ingênuos com seus vagões de familiares, do carnaval explodindo na sua segunda noite daquele verão provinciano e de uma enorme samambaia de plástico descendo pela parede branca do clube. Você se lembra das fantasias cintilantes, dos pierrôs e das colombinas juvenis, das máscaras, capas e espadas de Zorro e das índias de pele morena e lábios de carmim pulando à meia-luz. Você se lembra dos carros em fila dupla, Mavericks e Corcéis, congestionando a rua arborizada, soando buzinas frenéticas, desembarcando meninas de minissaia naquela noite sem brisa e com uma lua de encher o céu, esse mesmo céu coalhado de estrelas que sempre ressurgia em seus poemas.

      Você se lembra ainda hoje do exato momento em que ela apareceu. Só se ouvia uma voz: “Bandeira branca, amor, não posso mais, pela saudade que me invade, eu peço paz”. Você se lembra do seu jeito, do seu corpo, dos seus olhos tão escuros, um trejeito na hora de sorrir. Você se lembra da piscina, do banco todo azul, do garçom vestido de pirata, da grade verde no jardim, de uma gota de suor escorrendo pelo seu rosto de menino, da alegria que sentiu, sem a menor razão, enquanto os foliões retomavam a pista de braços levantados: “Mamãe, eu quero, mamãe, eu quero/Mamãe, eu quero mamar/Dá a chupeta, dá a chupeta/Dá a chupeta pro bebê não chorar”. Você se lembra da cantina, da cerveja e do lança-perfume na excitação de um canto mais escuro: “Quanto riso, oh, quanta alegria!/Mais de mil palhaços no salão/Arlequim está chorando/Pelo amor da Colombina/No meio da multidão”. Você se lembra ainda agora, na solidão da quarentena, enquanto a televisão exibe os números da pandemia e as sirenes das ambulâncias não param de soar.

      Como se fosse agora, exatamente agora, décadas depois, você se lembra dos seus cílios alongados, dos seus cabelos pretos pela cintura, dos seus passos leves de bailarina, da sua surpresa toda feita de risos e suspiros. Sim, você se lembra de cada detalhe, da sua saia dourada, da sua máscara, da purpurina no rosto e dos rolos de serpentina caindo como cascatas de papel num mar de papel crepom. De tudo aquilo que foi, que poderia ter sido, você se lembra numa sucessão de imagens que podem seguir qualquer ordem, do começo ao fim, do fim ao começo, do perfume ao abismo, da mão suave ao desatino, do beijo ao medo de não ser, memórias no esquecimento, lembranças numa crônica perdida no tempo, recordações num momento de pânico, de estupor, de cansaço e de incerteza. Você se lembra que já perguntava: como será o amanhã?

      Quantas vezes depois disso, desde então e para sempre, como quem repete um estribilho ou refaz uma oração, você se lembra de lembrar dessa noite ainda que se prometa esquecer em outros carnavais da existência. Você se lembra do que pensou, do que disse, do que esperou, de tudo aquilo que foi possível ouvir, sonhar e prometer no silêncio cúmplice embalado pela eternidade alegre das vozes retumbando no salão subitamente iluminado e já, outra vez, escurecido na intimidade de todos: Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô/Mas que calor, ô ô ô ô ô ô/Atravessamos o deserto do Saara/O sol estava quente/Queimou a nossa cara”. O tempo, você se diz enquanto lembra, não apaga essa vontade de reviver, o futuro talvez não passe de um passado interminável a ser imaginado enquanto os números são atualizados na televisão sempre para pior.

      Do que você mais se lembra então? Dos seus próprios cabelos encaracolados, escorrendo pelos ombros, do sargento gritando no quartel num final de manhã de janeiro: “Comunista não precisa servir”. Você se lembra de ouvir Belchior no rádio ABC da pequena sala de jantar: “E eu sou apenas um rapaz latino-americano/Sem dinheiro no banco/Por favor não saque a arma no saloon/Eu sou apenas o cantor”. Você se lembra também que jamais cantou a plenos pulmões, salvo nessa noite, nesse carnaval, nessa madrugada em que repentinamente a chuva apagou a lua e derramou-se sobre o pátio do clube como labaredas incendiando vontades, estimulando desejos, apagando a timidez tão natural e singela. Você se lembra que, de repente, estavam todos do lado de fora e que talvez nunca tenha existido um carnaval como aquele sob um tal aguaceiro.

– Vamos – você gritou.

– Aonde?

– Lá fora.

– Por quê?

– Porque sim.

      Não se podia dizer muito mais do que isso, não se podia ouvir grande coisa, salvo as batidas dos corações, batidas tonitruantes, adolescentes, perseverantes, absurdamente nítidas, ritmadas, tão afinadas quanto a voz da cantora negra majestosa, uma raridade ali, entre brancos, naquele clube de brancos ricos e de alguns pobres intrusos, onde negros só entravam se falassem em leis, em discriminação, erguendo a voz, ameaçando escândalos e aceitando enfrentar os olhares cruéis. Sem muito esforço, sem qualquer exigência, você, cuja memória se perde a cada dia em relação a tudo mais, se lembra do frescor depois daquela chuva, das fantasias lavadas, das maquiagens escorridas, da sensação de liberdade e de travessura, de que todos, embora não fosse verdade, se achavam livres para ir e vir. Você se lembra de ter causado espanto quando, um dia, sem mais nem menos, perguntou com sua voz de menino e seus olhos apertados de melancolia:

– Até onde podemos ir?

      Como esquecer? Por que lembrar? Você recorda das peças de teatro amador nos fundos da livraria que não durou, dos livros emprestados por um professor que depois sumiu para nunca mais voltar, com a sua barba negra e fina, os seus óculos redondos de lentes finas, os seus olhos tristes e amendoados, as suas frases cristalinas, o seu amor à poesia e sua mania de dizer: “O amor é a mais bela utopia”. Você se lembra de nunca ter visto aquela menina na escola, na livraria, na praça onde todos se juntavam para tocar violão nas noites quentes ou no cinema que só exibia filmes que já não mereciam ser vistos por quem queria mais, sempre mais, embora ninguém soubesse dizer o que era mais nem quando poderiam dar o grande salto para a luz e realizar o sonho de viver.

      De que mais você se lembra depois de tanto tempo, de tantas histórias e bifurcações, de tantos desvios de percurso e emboscadas? Das calças boca de sino, as suas eram azuis ou vermelhas, das campeiras de couro, dos tênis Bamba, dos primeiros hippies na cidade, bicho, da voz rouca de Janis Joplin rasgando a pasmaceira dos domingos, da guitarra de Jimi Hendrix, de uma colega que amava Maria Bethânia e se parecia com ela – onde andará? –, dessas descobertas tardias que pareciam prematuras e ressoavam nas madrugadas como passos numa casa enorme em construção. Você se lembra do medo aveludado e repugnante que sentíamos de não viver, de não sair de casa, de não ganhar o mundo, de não arrancar a casca que impedia de voar e de gozar o imaginado, das aranhas que subiam pelas paredes da casa abandonada pelos fugitivos.

      Naquela noite, porém, você se lembra que não teve medo, não hesitou, não perguntou, não se inibiu, não se podou, pois sempre diziam que você se bloqueava para não correr o risco de cair no vão das coisas desconhecidas, perigosas e tão desejadas antes da hora. Em breve, você partiria levando na bagagem um enorme silêncio sobre o futuro. Se medo houvesse, seria de uma armadilha do destino. Mas você não acreditava em armadilhas e muito menos no destino, cujo nome lhe vinha à mente como uma superstição, uma dessas palavras usadas para não ter de pensar. E tudo o que você mais fazia era pensar: numa maneira de colocar o pé na estrada, de amar e de sair do outro lado do mundo como um poeta que se evadiu. Você se lembra que falava assim para os amigos e causava espanto, diziam que estava louco, era louco, inventava linguagens. Você ria, sempre ria, até o chamavam de aquele que ria, o cara do riso, o maluco legal, que ninguém dizia bacana, o menino dos sonhos doidos.

– Para de sonhar, seu maluco.

– Por que mesmo?

– Sonhar não dá camisa a ninguém.

– Nem custa nada.

      Como quase todos na sua tribo, lembra? – claro que lembra, não é do seu feitio esquecer essa época, mesmo que negue, que diga o contrário na frente do espelho – você amava os Beatles e um pouco menos os Rolling Stones, mas amava também os cantores da terra, os que falavam a sua língua, os que desnudavam os seus temores e anunciavam os seus medos. Mais do que tudo, seja sincero, não tenha vergonha de admitir, ainda mais agora que nada pode mudar, você amava a Jovem Guarda. Você se lembra que não teve tempo de saber do que ela gostava. Daquela noite você nunca consegue esquecer o timbre da voz dela, uma musicalidade capturada em fragmentos no meio da algaravia da festa:

“Oh, jardineira, por que estás tão triste?

Mas o que foi que te aconteceu?

Foi a camélia que caiu do galho

Deu dois suspiros e depois morreu

Foi a camélia que caiu do galho

Deu dois suspiros e depois morreu.”

      Falando em tempo, sim, é disso que também se trata, embora não valha à pena insistir, você se lembra de uma sensação estranha: o tempo parou e voou numa mesma marcha. Nunca na sua vida uma noite foi mais longa e mais curta do que aquela. Havia um relógio na parede oposta à da samambaia e os seus olhos mais de uma vez se chocaram com os ponteiros e não conseguiram traduzir a hora que se revelava. Em algum momento, você lhe mostrou o relógio como quem diz: o que é aquilo? Que horas são? Ela riu. Esse riso, um flash no turbilhão do baile, ainda se ilumina teimosamente enquanto você tenta espantar com um gesto essa impertinência do passado, essa inconveniência da memória, essa coisa que agora, enquanto a televisão conta os mortos da pandemia, volta como uma marca na parede branca, uma mancha na memória que não se dissipa.

      Você se lembra dela dos pés à cabeça como uma evaporação. Lembra dela fazendo você dançar mais do que nunca, tirando-o da imobilidade que o caracterizaria para sempre, isso sem falar nada, sem sugerir, sem aconselhar, sem forçar, apenas com um jeito de olhar. O passado, quem não sabe disso, não é confiável nem verdadeiro, sempre se deixando manipular e mentindo para o mentiroso pelo simples fato de ser uma reconstrução permanente. No seu ceticismo, obviamente, você diz que nós é que não somos confiáveis e que o passado não passa de uma idealização, de uma teimosia da memória. Só que, não há como negar, estando lá, naquela noite, naquele encontro, naquela atmosfera, você se cristalizou. Cada detalhe daquela noite está na sua lembrança como uma pintura rupestre: milenar, viva, dolorosamente colorida, mágica, uma narrativa cujos detalhes mais importantes nunca serão decifrados. Quem era você naquela noite? O que sentia? O que temia? O que mais queria?

      Quantas vezes, nesse longo tempo escoado deixando borras num coador de café, você repetiu a pergunta que nunca encontrará resposta: por quê? Certo, a pergunta nem sempre foi tão seca nem tão lisa. Teve as suas tantas variações: por que foi como foi? Por que comigo? Por que conosco? Por que essas coisas acontecem? Dessa calamidade restou em você a nostalgia, a sensação vaga de perdição quando a noite cai, a dor que se repete a cada marchinha, a paixão e o ódio pelos carnavais, a depressão em certas madrugadas de chuva, a impressão de que todas as samambaias são de plástico, o desgosto pelos salões ovais e o desprezo pelos relógios de parede. Quando conseguiu contar o que tinha acontecido, você se lembra, nunca esquecerá, já se sabia o essencial, que, no entanto, sempre omitirá, mesmo na angústia do horror diante do inimigo invisível, os sentimentos mais profundos do instante congelado.

      Nunca se saberá com certeza o que você sente a cada mês de fevereiro ou quando contempla a água azul de uma piscina enquanto uma cantora negra canta, num salão de clube lotado, as mais famosas marchinhas de carnaval. Encastelado nas suas lembranças, você não fala, não se abre, não compartilha. Faz de conta que esqueceu, afirma que o tempo tudo liquida e que até mesmo as piores dores se esfarelam quando o relógio da parede nua se torna novamente inteligível para os que já não sonham ou são reféns de um sonho ao qual não têm acesso como protagonistas. Todos que o cercam conhecem as suas filosofias, as suas imagens para desnortear o tempo, a sua cara de paisagem de cidade do interior, o seu gosto por metáforas que se perdem em reticências. Por trás da sua calma, desse ar pacato, esconde-se um vulcão devorado por esse tormento que, às vezes, lava o recinto morno da sua solidão.

“Ai, ai, ai ai, ai ai ai

Está chegando a hora

O dia já vem raiando, meu bem

Eu tenho que ir embora.”

       É na calada dos bailes que você se lembra mais, não é mesmo? A noite declinava como uma voz abafada pelo esforço de ser sublime. Vocês saíram de mãos dadas, como se vivessem juntos desde sempre, apaixonados desde o primeiro olhar mascarado e sinuoso, na maturidade dos 17 anos de idade implacáveis em exigências sensíveis. Queriam escapar dos últimos encantamentos dos foliões e da melancolia que se instalava a cada nova alegria. A rua era um cemitério de carros adormecidos, de árvores preguiçosas, de garrafas vazias, de pedaços de fantasias. O céu estava novamente pacificado. Corria, enfim, uma brisa inesperada. O dia seria quente. As primeiras horas da manhã, porém, seriam frescas. Você pensa nisso agora enquanto mulheres de máscara aparecem na tela para se proteger do vírus que pode cancelar o futuro, mas ainda não o passado.

      Então vocês caminharam pela calçada da esquerda como dois namorados que ainda não eram, que jamais seriam, mesmo sem nunca se separar. É uma coisa sua, não, ainda hoje, andar sempre pela calcada da esquerda mesmo quando tem sol ou está escuro? Já era assim ou é uma forma de lembrar daquele instante que logo se tornaria uma tragédia? Como saber? Você não confessa. Prefere viver nessa sua estranheza, essa sua esquisitice que arranca provocações das crianças do bairro. Você se acostumou, não reclama, não reage. O silêncio é a sua comiseração.

Vocês apertam as mãos. Lembra? Subitamente ouvem vozes, que se elevam, que se tornam gritos, que trazem pânico. Um homem surge correndo na outra calçada. Atravessa a rua serpenteando entre os carros. Você vê quando ele se apoia no Maverick verde, quando dribla o Corcel azul, quando se torna perfeitamente visível sob a luz pálida do poste. Ouve-se um tiro vindo de mais longe. O homem ergue o braço direito. Ele porta uma arma. Tropeça. Dispara sem mirar qualquer alvo. Ela se dobra lentamente ao seu lado. Uma mancha vermelha brota sobre a fantasia. No peito. O corpete fica mais escuro. Amanhece na cidade como se, de repente, tudo remetesse a uma paisagem de infância no campo.

Ela usava uma máscara dourada.

Você se lembra.

 

 


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