"Nelson Freire, meu ídolo"

"Nelson Freire, meu ídolo"

Nelson Freire e Chico Buarque contista

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Manifestação contundente: “Sou o que se chama de homem comum. Um francês comum. Ganho minha vida tocando piano. Não tenho aspirações ao sucesso. Sinto-me bem. Posso dizer que sou feliz no anonimato. Tenho os meus ídolos. Um deles, o brasileiro Nelson Freire, que faleceu neste 1º de novembro”. Sigo o fio do depoimento: “Pela primeira vez, aplaudi o presidente Emmanuel Macron, pela sua nota em homenagem ao pianista. Para mim, um dos maiores do nosso tempo. Não gosto de futebol nem de carnaval. Sei das façanhas de Pelé e de outros. Mas, para mim, o grande brasileiro é Nelson Freire”.
    Mergulho nessa argumentação: “Quando ouvi Freire interpretando Chopin, eu me disse: “Quero ser como ele quando eu crescer”. Depois, descobri que ele podia fazer ainda melhor tocando Beethoven, Debussy, Brahms ou Schumann. Aí me deixei levar por ele e fui parar nas belezas de Villa-Lobos”. Fico sensibilizado: “Tenho amigos que não entendem o que dizemos quando falamos de um pianista sutil, elegante e delicado. Acham que isso é muito subjetivo, pura metáfora. Dou exemplos, faço ouvir, mostro diferenças. Não entendem. Freire era tudo isso e um pouco mais. Chorei, sim, ao saber da morte dele”.
    Paro e leio jornais europeus. Le Monde: “Morre Nelson Freire, gigante do piano”. Le Figaro: “Pianista Nelson Freire, sutil intérprete dos grandes românticos, falece aos 77 anos”. Libération: “Piano órfão do seu nobre felino”. Retomo a mensagem: “Imagino a comoção no Brasil! Vi Nelson Freire com a Filarmônica de Paris. Podia ficar arrepiado com suas interpretações de Liszt e de Rachmaninoff. Ele desmentia alguns dos nossos melhores clichês: não tinha mãos de pianista. Parecia um contido. Em cena, explodia em emoções e coloridos inusitados”. Tudo é possível quando se tem muito talento.
    O fã anônimo prossegue num tom que comove e revela acompanhamento: “France Musique conseguiu defini-lo como eu gostaria de ter feito: ‘É um monumento, um monstro sagrado do piano que nos deixa’. Mais do que isso, ‘com ele uma exuberância incomum no teclado se extingue, misturada com uma rara sensibilidade e expressividade”. Franceinfo disse tudo: ‘Ele era um dos pianistas mais reconhecidos, mais também mais amado do mundo’. É raro ver um virtuoso da música erudita alcançar tamanho sucesso hoje, ainda mais midiático”.
Procuro também. Esta síntese mostra a sua dimensão: “’Ele é um dos pianistas mais inspiradores de todos os tempos’, escreveu a revista americana Time, após seu primeiro show em Nova York. Ele era muito próximo da famosa pianista argentina Martha Argerich, com quem costumava dar concertos”. Quem quiser, pode conferir a repercussão da morte em jornais de língua inglesa e alemã. The Guardian: “O piano incomparável de um mestre da clareza”. Silêncio e tristeza. Eis.
    O confidente diz: “Volto ao meu piano anônimo, meu paraíso de notas e admirações. Fiz minha pequena homenagem. Nelson Freire foi tão grande que jamais precisou de estratégias para se destacar. Simplesmente tocava. Precisa ser gigante para me fazer citar Macron, esse presidente nem-nem, nem isso, nem aquilo. Fecho com a frase lapidar da revista Télérama: ‘Un grand pianiste avec une touche d’exception’. Peço que não se traduza. Era ele que tudo traduzia numa musicalidade incomparável, em suaves e cristalinas cascatas”.
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    Bons amigos presenteiam com livros. Leandro Minozzo me levou em casa “Anos de chumbo e outros contos”, de Chico Buarque. Farei uma tese com vistas às despesas de polêmica para quando a pandemia passar de vez e eu mostrar a minha figura no bar Cantante, no Bom Fim, de onde quase já não saio (recusei, nos últimos dois meses, cinco convites com tudo pago para eventos na Europa). Vai a tese: Chico Buarque é melhor contista do que romancista. Talvez seja uma consequência da sua condição de compositor genial. Letras exigem concisão. Os contos de Chico Buarque são envolventes, ágeis, com bons pontos de virada, surpresas sob medida e verdadeiras histórias. Minha preferência: “Cida”. Confira, leitor, e me diga. Chico é tão bom na música que as avaliações sobre a sua literatura ficam comprometidas.
    Ele já contou que pensou em usar pseudônimo antes de publicar o primeiro romance. Achou que seria vaidade demais. Não sei. A editora não aceitaria para não perder o potencial de venda. J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter, usou um nome fictício para obras em outro estilo. Fez sucesso também. Os originais de Harry Potter foram recusados por doze editoras. Esse tipo de informação é sempre reconfortante para quem ainda não teve seus méritos reconhecidos. Houve escritor famoso que mandou original para a própria editora, com pseudônimo, e foi recusado. Chega de desvios. O contista Chico Buarque é muito bom. Não dá um Nobel, claro. Nem é preciso. O conto mais fraco é o que relembra o encontro do jovem Chico com Clarice Lispector. Não é ruim. Só não encontrou a justificação narrativa.

 


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