Novas vezes para lembrar

Novas vezes para lembrar

Crônica sobre a memória

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Então ela se virou e disse que estava cansada.

Era um daqueles dias de verão com cara de inverno: chovia mansamente. Uma dessas chuvas tristes que se alastram ao longo de uma tarde e deixam o céu baixo como um teto que cedeu e quase toca os móveis mais altos. Da janela era possível ver as poças das águas, homens com os bicos dos sapatos leves molhados e gotas escorrendo sobre o para-brisa dos carros estacionados no outro lado da rua. Ela repetiu o gesto de enfado. Na mesa do canto, o pessoal jogava canastra e contava velhas histórias que terminavam com risos e suspiros:

– Lembra daquela vez...

      As vozes se repetiam como certos improvisos de jazz, cada vez mais melancólicas, cada vez mais lindas, sempre acavaladas, como se todos quisessem se lembrar ao mesmo tempo daquelas vezes em que haviam sido felizes e que os deixava não apenas saudosos, mas deliciosamente sofridos. O jogo era só um pretexto para continuar lembrando até doer. Há algo de doentio nessa incapacidade de esquecer e nesse gozo na reminiscência que faz do presente um tempo sem futuro e principalmente sem passado.

– E aquela outra vez...

      Eram tantas as vezes. Sempre as mesmas. Sempre tão necessárias de contar novamente. Esse tipo de chuva parece ter o dom de congelar o tempo em pleno verão. Uma orquestra inaudível para os outros toca músicas da juventude e chega-se a balançar o corpo num movimento de dança que se tornou velho na estação seguinte. Quando foi aquilo mesmo? Foi ontem? Dez, vinte anos já? Não pode ser? A voz que se ouve no silêncio da memória murmura um refrão que não salta mais dos lábios embora se mantenha por um fio, sempre prestes a tocar a mesa de jogo como uma lágrima de tanto rir, de tanto lembrar coisas engraçadas daquelas muitas vezes inesquecíveis.

– Teve também aquela vez...

      Ela se levantou e foi até a vidraça fitar o cinza do anoitecer. Passou o dedo no vidro e abriu-se uma linha dividindo a área em campos espessos com uma estradinha no meio, aquela mesma estradinha de que todos se recordam e que levava ao lugar aonde se encontravam para em sonho se evadir, fugir dali, sumir no mundo. Escorreu um pingo de alto a baixo. Não havia como não acompanhar aquela sangria insípida, inodora e o que mais mesmo? Todos riram. Ri-se muito quando se fica triste assim. Joga-se sem vontade sabendo que não é possível parar. Há um dever de memória. É quando alguém se retira para o ambiente mais simples do seu passado e fica revirando as coisas para tentar ser de novo aquilo que se lutou para desconstruir. Mexe-se em caixas de sapatos e encontra-se a fotografia.

      Estão todos lá. Salvo quem nunca mais voltou. Exceto quem já partiu.

Ela se encolheu subitamente. O jazz imaginário se tornou frio como uma lâmina. Ressoava na mente de todos um velho sucesso cantado baixinho. Fez-se um repentino e inexplicável silêncio para ouvi-la. Então ela repetiu:

– Precisamos de novas vezes para lembrar.


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