O dissidente chinês, as ditaduras e a democracia

O dissidente chinês, as ditaduras e a democracia

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A democracia, como se sabe, é cheia de defeitos. A sua única qualidade é ter menos defeitos do que as ditaduras. Os sistemas totalitários, de direita ou esquerda, têm uma pequena dificuldade com aquilo que faz a essência da democracia: a opinião contrária. Sou capaz de entender que boa parte da população de um lugar decida adotar uma forma de organização social inaceitável para o restante. Nesse caso, como disse Jô, o centroavante filósofo e festeiro do Internacional, aos seus vizinhos: “Os incomodados que se retirem”. Os ditadores, porém, são mais insanos do que Jô: os incomodados não podem se retirar.

Nem que tenham recursos para isso. Por quê?

Porque vão falar mal do sistema no exterior. Porque, se deixar, sai todo mundo e falta escravos para o regime. Porque é da natureza do totalitarismo não aceitar a vontade daqueles que considera seus súditos. A China pode crescer como um gigante, pode ser uma potência incontornável, pode ser uma cultura milenar, mas continua sendo também uma ditadura medíocre capaz de tentar impedir um oponente cego de deixar o país. É uma das histórias mais horripilantes dos últimos anos.

Nenhum sistema que limite a liberdade de expressão é respeitável. Há limitação à expressão nas democracias capitalistas? Sim e não. Aquilo que não sai num lugar por pressão de patrocinadores, que podem ser os governos, ou dos patrões, sai noutro. Não há limitação oficial e politica à liberdade de expressão numa democracia. O poder econômico se impõe? Nem sempre. Nesta época de internet, cada um diz o que quer, dentro da lei aprovada por representantes democraticamente eleitos, quando quer.

Cuba, China e Coreia do Norte não passam no teste do omo total. Falta transparência. Uma democracia alimenta-se daquilo que horroriza as ditaduras: um certo caos, alguma desordem, manifestações nas ruas, greves, conflito aberto. Democracia é ter Veja e Carta Capital, o reacionarismo de Reinaldo Azevedo, o jornalismo chapa-branca de Luís Nassif e os tantos franco-atiradores. Daí o conceito de ditadura total: regime que não permite a saída do país daqueles que não estão de acordo. Um regime pode oferecer comida, saúde, educação, conforto, o que quiser, mas se não oferece liberdade de expressão e de ir-e-vir comete pecado mortal. O dissidente chinês cego prova que o regime comunista continua afundado na sua principal contradição: o desrespeito à liberdade de opinião. Ditaduras de direita e de esquerda compartilham esse horror ao pensamento livre, à dissidência.

Integram um mesmo imaginário, o imaginário da ordem asfixiante.

Ditadores de direita e de esquerda compartilham um mesmo credo: a existência de uma vanguarda iluminada capaz de saber o que é bom para os demais. Esquerda e direita dividem-se quanto à propriedade privada. Mas unem-se na propriedade privada da opinião. As experiências do socialismo real não aceitaram opiniões em contrário. Há quem diga que o verdadeiro comunismo ainda não foi praticado. O cego chinês certamente não pagaria para ver essa nova e iluminadora experiência.

Nem eu.

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