O legado de Freddie Mercury

O legado de Freddie Mercury

publicidade

 Rapsódia boêmia

      Estou cada vez mais caseiro.

Vivo no meu recanto cultivando lembranças e imaginários. Se é para sair de casa, não sendo para trabalhar, em tempos sombrios, que seja para caminhar pela manhã no ensolarado Parque da Redenção, que já foi reduto de escravos fugindo da “bondade” dos seus donos. Ser dono de gente, eis uma coisa que jamais entenderei. Em época alguma. O capitalismo comercial baseou-se na propriedade de homens por homens. Caminhar é uma forma de liberdade. O corpo faz sentido. Para que correr? Já não corro, hoje faço com meus passos o meu viver. É bastante.

Também vale sair para ir à noite ao cinema ver “Bohemian Rhapsody”, sobre a vida de Freddie Mercury e da banda Queen. Obra de ficção, o filme adultera vários fatos. Inverte a ordem de acontecimentos, dramatiza, tem seus momentos de novela das nove. Mas não deixa de ser belo e fundamental. Tem três aspectos decisivos: a luta do menino modesto para ir além das suas possibilidades iniciais; o combate dos artistas para não serem engolidos pela lógica puramente comercial; as dificuldades de um homem, mesmo artista famoso, para assumir sua sexualidade num mundo de preconceito e mentira.

Freddie Mercury passou de Farrokh Bulsara, chamado jocosamente de Paquistão, nascido em Zanzibar, a estrela internacional de primeira grandeza, depois de ter sido modesto empregado no aeroporto em Londres. Transformou uma banda de universitários, com um dentista e um astrofísico, à qual se agregaria um engenheiro elétrico, numa lenda chamada Queen. Fez deles músicos profissionais. Bancou sua arte, baseada na sua sensibilidade e intuição, contra preceitos da indústria fonográfica. O seu maior obstáculo, porém, foi a sexualidade. Não sabia como se assumir num universo hostil, curioso e refratário. Tornou-se um mito da música e um homem atormentado pelos seus desejos e enigmas. Escondia o que era notório.

Falando assim, parece uma história antiga. Freddie Mercury morreu de Aids em 1991. A mídia fez de tudo para que ele confessasse seu segredo, o que ele não fez nem para a família, que fingia ignorar, mas só para Mary Austin, namorada, companheira, amor da sua vida, homenageada em “love of my life”. Para ela, deixou sua mansão e seus direitos autorais. Na antiguidade clássica, Mercury não teria sofrido. Dos 12 césares, apenas Cláudio não teve relações com pessoas do mesmo sexo. Sócrates considerava inspirador ir para cama com seus jovens discípulos. As famílias autorizavam. Fazia parte da formação. Alexandre, o Grande, bancou um funeral de rei para Hefastião, seu amante. O luto demorou meses. Segundo Suetônio, Júlio César, quando tinha 19 anos de idade, enrolou-se com o rei Nicomedes. Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, era caso de Felipe II, rei da França. Tudo de boa.

Há uma boa matéria sobre isso em Aventuras na História. Basta googlar. Freddie Mercury viveu em nossos tempos modernos. Foi ontem. Mudou muito de lá para cá? Entramos em novo século e milênio? Freddie deixou um legado: música de grande qualidade. Viveu uma rapsódia. Nem sempre boêmia.

Quase 30 anos depois da sua morte ainda é um problema para muitos assumir a homossexualidade.

 

 

 

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895