O morador de rua que lia livros

O morador de rua que lia livros

Autores que devem lidos com urgência

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  Guri franzino, eu não era bom de briga. Mas era desbocado. Tive de sair na mão algumas vezes. Em geral, eu pedia para enfrentar no mano a mano os meus oponentes. Se, por acaso, eu começava a levar vantagem, quatro ou cinco caíam em cima de mim. Uma vez, briguei por livros. O único morador de rua da cidade estava lendo “Dom Casmurro”, que encontrara no descarte de uma mudança. A galera, que, na época, era chamada apenas de gurizada, turma, bando ou, pelos mais velhos, malta, resolveu surrupiar-lhe o exemplar. Só por implicância. Não gostei. Saí em defesa do leitor, o Nico, que só ficou assistindo.

      Pensei nisso, sem muita razão, quando vi, na Protásio Alves, um morador de rua lendo “A menina que roubava livros”. É o segundo que eu vejo com essa obra. Eu caminhava com uma ideia na cabeça: ver a exposição, na Casa da Memória Unimed Federação/RS, “O desafio da pedra”, com esculturas do médico Lúcio Spier, que abre neste domingo. Trazia na mente também uma algaravia de leituras em curso ou já feitas: “O governador do fim do mundo – O Rio Grande de São Pedro nos tempos do Marquês de Pombal” (Portal Edições), do ótimo Sinval Medina; “Os mortos não estão mais sós” (Sulina), do talentoso francês Vincent Petitet, com orelha escrita por mim; “Escritos da quarentena”, organizado por Ricardo Hoffmann, coletânea de textos sobre a pandemia, inclusive um de minha autoria; e “À espera de um igual”, livro de poesia do meu conterrâneo, o santanense Thomaz Albornoz Neves.

      A poética de Thomaz é vigorosa e suave. Podem ser poemas curtos e densos, leves e provocativos, faíscas: “Tornar-me/quem/me esqueceu”; “Ao vento/um trigal/sem terra/A luz do teu corpo sentes em teu corpo”; “O instante ao sol/abole a existência da noite/Mas o infinito na tarde/esbarra igual no limite do olhar”; “Tua luz/dissipa/as formas/No lago de calor/sou ar aprisionado”; “Vivo contigo/como o verso antes de ser escrito/A poesia está em nós tornando-se poema enquanto ainda não é/A poesia não tem significado no poema”. Leio, releio, caminho.

      Vincent Petitet, que conheci em Paris, tem uma prosa sinuosa: “Visitado toda noite por seres mortos, dialogando noite após noite com seus fantasmas, Antoine permanecia vítima de amnésia ao acordar. Nunca se lembrava deles, não tinha nunca consciência da beleza ou do eco de suas palavras. Porém, era a última vez que ele ignoraria seu magistério noturno”. A ótima tradução é de Simone Ceré. Ah, se um livro desses tivesse o logotipo da Todavia ou da Cia das Letras na capa. Já quase saí no tapa, depois de adulto, por esse tipo de comentário. Fui chamado de ressentido. Respondi: “Com orgulho”.

      Pensei em levar meu romance “Acordei negro” para análise do morador de rua leitor de “A menina que roubava livros”. Não o encontrei no seu ponto. A prosa de Sinval Medina é sólida, robusta, cristalina, envolvente: “A viagem até a Lagoa dos Patos decorreu com bom tempo e sem incidentes. Antes da partida, José Marcelino relutou em cavalgar mulas e não os cavalos de remonta do regimento. Muares não lhe pareciam condizer com um oficial da nobre arma da cavalaria. Diante da insistência de um ajudante de ordens, concordou em experimentar a nédia mula ruana que lhe foi oferecida”. No “reversalismo”, doutrinada introduzida no mundo literário por Ian McEwan em “A barata”, muares podem certamente cavalgar homens.

      Apanhei uma vez por ter chamado indevidamente um muar de burro. O dono era sensível. Ricardo Hoffmann, em “Escolhi a vida’, nesses “Escritos da quarentena”, destaca: “Ninguém está imune ao vírus. Assim como não estamos livres de quaisquer outros acontecimentos em nossas vidas. Basta estar vivo (...) De pronto, posso afirmar que jamais me ocorreu ignorar a COVID-19. Muito menos menosprezar a sua gravidade – até porque está escancarada diante de nossos olhos com tantos óbitos aqui e mundo afora”. Nem todo mundo, porém, vê o visível, quanto mais o invisível. O mundo do homem comum é uma caixinha sem surpresas.

      O que encanta em “A menina que roubava livros”, de Markus Susak? “Basta dizer que, em alguns pontos do tempo, eu me erguerei sobre você com toda a cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços. Haverá uma cor pousada em meu ombro. E a levarei embora gentilmente”. É a morte, personagem narradora, falando. Não é uma leitura pesada demais para quem mora na rua? Eu sinto o peso mesmo sob o meu teto. As minhas lembranças são fragmentadas. Há coisas que ficam muito tempo sepultadas e, de repente, ressurgem como se tivessem acontecido ontem.

      É o que sinto vendo duas séries da Netflix: “Bolívar” e “Anne com e”. Os acontecimentos me fazem lembrar de situações de algum momento: desafios, rejeição, decisões erradas, falta de coragem ou excesso de confiança. Subitamente eu me recordo de brigas. Em “Bolívar”, Manuelita transou com um cara, que se mandou. Ela ficou “manchada”. Já briguei para justificar minhas manchas. Não me arrependo de ter apanhado da malta para salvar o livro do Nico.


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