O mutante Ricardo Boechat

O mutante Ricardo Boechat

O coloquial como estilo

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Não conheci Ricardo Boechat pessoalmente, mas assistia quase diariamente ao seu Jornal da Band. Neste meio, mesmo vivendo na periferia do sistema, costuma-se conhecer quase todo mundo, inclusive as estrelas nacionais. Gostava do seu estilo de apresentação: pausado, conversado, sem muito alarde e impostação. Por vezes, considerava os seus comentários muito conservadores, mas bem menos que os de Boris Casoy. Outras vezes, concordava com ele e aplaudia a sua indignação. Admirava certa informalidade que ele conseguia impor ao seu noticiário. Nunca o ouvi realmente no rádio, salvo em trechos recuperados na internet. Ele levou para Rio e São Paulo o estilo coloquial praticado no Nordeste e até no RS.

      Boechat morreu no auge da fama e da longa carreira. Quem poderia ter previsto há alguns anos que ele se tornaria estrela de televisão? Apesar do culto à beleza e à juventude dominante nesta “sociedade do espetáculo” implacável dos marqueteiros, a televisão brasileira abre espaço para pessoas competentes fora do padrão idolatrado pelos fazedores de normas. Há lugar para carecas, gordos, feios, velhos e até esganiçados. Ultimamente Ricardo Boechat andava explosivo, brigando com a sua equipe no ar. É um mal que acomete os famosos. Morreu numa queda de helicóptero. Sai de cena num momento delicado do país. Não verá o produto da era Bolsonaro. Fará falta como jornalista de certa elegância e humor.

      Sim, havia humor em algumas falas de Boechat. Ele parecia adorar as parcerias com o humorista José Simão. Um humor corrosivo nas entrelinhas. Rico e atarefado, Boechat precisava usar helicóptero. Certa vez, quando ele era editor-chefe do Jornal do Brasil, precisou anunciar o salário de um repórter contratado pelo dono do veículo. O número era bem menor:

– Não foi isso que me prometeram – disse o rapaz.

– Eu sou o fdp que notícia a verdade – respondeu Boechat.

      Ele parecia se divertir na profissão. Tinha carisma ainda que não se apresentasse como um expressivo de plantão, esses histriônicos que enchem o espaço com o vazio que cultivam em laboratório. Nada a ver com a vulgaridade assombrosa de um José Luís Datena, a frieza metálica de um Faustão, a arrogância mal dissimulada de um William Waack ou a enigmática postura de William Bonner. Boechat foi âncora de fato. Não estava lá só para ler letrinhas em movimento ou escolher matérias. Opinava frontalmente. Na medida do possível. Mais do que profissional da telinha, era jornalista. Na televisão, porém, todo mundo acaba por ser um pouco comediante. Ele fazia o jogo com leveza. Não se pode, claro, idealizar. As explosões no ar indicavam um temperamento talvez difícil nos bastidores. Certo é que Ricardo Boechat conseguiu se adaptar às mudanças do jornalismo contemporâneo. Saiu do jornalismo impresso para a televisão como um sobrevivente em busca de espaço para respirar. Foi o seu grande salto. Virou referência na retal final. Fazia o possível nos limites onde navegava.

      O ano brasileiro começou avassalador. Alguém dirá que todo ano traz o seu quinhão de desgraças. É possível. Mais do que isso, é provável. Guardamos, no entanto, certos fatos e não outros. Na retrospectiva de 2019, lamentaremos Brumadinho e o Ninho do Urubu, duas tragédias enormes que ceifaram inocentes de todo tipo, inclusive os jovens jogadores do Flamengo. Lamentaremos também a morte em acidente de um grande jornalista. Ricardo Boechat honrou a profissão. Passava credibilidade no que dizia. Era papo reto.


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