O Rubicão dos Estados Unidos

O Rubicão dos Estados Unidos

Dia de salvar ou comprometer a democracia

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      Já atravessou o Rubicão? Eu, sim. Várias vezes. Atravesso de novo quando mato o tempo lendo sobre Roma. Por exemplo, “O triunfo e a tragédia da república romana”, de Tom Holland: “O dia era 10 de janeiro e o ano, o setingentésimo quinto desde a fundação de Roma, quadragésimo nono antes do nascimento de Cristo. O sol já desaparecera havia muito por trás dos montes Apeninos. Em formação de marcha, os soldados da 13ª Legião permaneciam imóveis na escuridão”. Não se atravessa o Rubicão como quem vai a uma festa ou passear.

      “Se seguissem por aquela estrada, porém, os soldados da 13ª Legião estariam cometendo uma ofensa mortal, não apenas por ultrapassarem os limites da sua província, mas também por infringirem as rígidas leis do povo romano. Estariam, de fato, declarando uma guerra civil. Entretanto essa era uma catástrofe para a qual os legionários, ao marcharem em direção à fronteira, haviam se mostrado absolutamente preparados. Ao baterem os pés no chão para se defender do frio, eles aguardavam o som das trombetas que os convocaria à ação, a por nos ombros as armas e avançar – a atravessar o Rubicão”. Já fez tempo que atravessamos o Rubicão. Tanto tempo que nem usamos mais essa imagem que durante séculos significou não ter mais volta, dar um passo definitivo e cheio de consequências.

      Holland escreve: “A travessia do Rubicão marcou o fim de uma era. O Mediterrâneo tinha sido pontilhado por cidades livres. No mundo grego e na Itália também essas cidades foram habitadas por homens que não se identificavam com súditos de faraós ou de reis, mas sim como cidadãos que proclamaram, cheios de orgulho, os valores que os distinguiam dos escravos – liberdade de expressão, direito à propriedade, proteção pela lei”. Tudo o que seria chamado de civilização. “Aos poucos, porém, com o advento dos novos impérios – primeiramente os de Alexandre, o Grande, e de seus sucessores, e depois o de Roma – a independência daqueles cidadãos foi sendo cercada por toda parte. No final do século I a.C. restava apenas uma cidade livre, que era justamente Roma”. O resto todo mundo sabia.

      Ainda sabem? Holland relembra: “Quando César atravessou o Rubicão, a república implodiu e com ela deixou de existir a última cidade livre. Em consequência disso, mil anos de democracia chegaram ao fim e foi necessário que se passassem mais de mil anos novamente até que o conceito de autodeterminação voltasse a ser posto em prática”. Como as casas, na linguagem do poeta Eliot, as democracias vivem e morrem. O resto podia ser mais um fragmento dessa poesia: “há um tempo para construir/E um tempo para viver e conceber/E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças/E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre/E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a silente legenda./Em meu princípio está meu fim”. Não é assim? É diante disso que nos encontramos nesta terça-feira.
      Atravessar o Rubicão já foi metáfora. Não há mais lugar para metáforas. Como diria o cineasta Guy Debord, antes de exibir seu filme sem imagens, “o cinema morreu, passemos ao debate”. Como? Não há mais debate. A plateia, segundo a lenda, queimou o cinema. O Rubicão era o limite. Se Donald Trumpo vencer o eleitor americano passará o Rubicão. Os sinos dobrarão pela democracia.

 


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