Ontem como hoje, a corrupção

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A corrupção contra a liberdade dos escravizados

 

Termino esta semana folhetinesca com um fragmento do meu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social (à venda no Correio do Povo com desconto para assinantes). Tudo o que fazemos hoje de ruim já era praticado fartamente no século XIX: superfaturamento, fraude, desvio de recursos para campanhas eleitorais, leis que não pegavam, uso de informação privilegiada para faturar especulativamente. Tudo o que somos agora.

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A história da abolição da escravatura no Brasil pode ser resumida numa expressão: luta contra a fraude. Robert Conrad  mostra que o Fundo de Emancipação constituído pela lei de 1871 foi corroído por todo tipo de fraude: em 1874, havia 3 mil contos em caixas, mas faltavam registros para que o valor pudesse ser aplicado; até 1878, quase um quinto do arrecadado fora gasto na compra de livros de registro; os escravos de mais de 70 anos foram libertados a preços tão altos que dava para comprar meia dúzia de jovens; os proprietários podiam escolher quem seria libertado pelo fundo: indicavam “doentes, cegos, inúteis e imprestáveis”; mortos eram libertados. Tudo acontecia, como denunciou a Gazeta da Tarde, em 14 de dezembro de 1883: “O fundo de emancipação também serviu, conforme foi alegado, como fonte de dinheiro para campanhas eleitorais e, em algumas comunidades isoladas, as distribuições anuais de fundos iam regulamente para cinco ou seis pessoas influentes”. Desvio de recursos, aumento artificial de preços, fraudes. Escravos de Campinas foram vendidos ao preço superfaturado de 1.556 mil-réis. Várias vezes o preço médio praticado na época.

Antônio Prado, como ministro da Agricultura de Cotegipe, regulamentou a Lei dos Sexagenários altamente em favor dos proprietários de escravos. Não seria preciso, por exemplo, indicar a naturalidade dos cativos registrados, o que facilitava trocar um morto por um vivo transferido de província. Durante os debates que levaram à lei Saraiva-Cotegipe, Prado, em voto em separado, propusera o que se poderia chamar de fator “abolicionário”. O projeto do governo fixava o preço dos escravos para indenização do governo assim: menores de 20 anos, 1.000$000; de 20 a 30 anos, 800$000; de 30 a 40 anos, 600$000; de 40 a 50 anos, 400$000; de 50 a 60 anos, 200$000. Haveria uma depreciação anual de 6%. Em 16 anos, aconteceria a extinção da escravidão. Prado percebeu que podia tirar mais para os proprietários com outra tabela: até 35 anos, 1.000$000; de 35 a 40 anos, 800$000; de 40 a 45 anos, 600$000; de 45 a 55 anos, 400$000; de 55 a 60 anos, 200$000; de 60 a 65 anos, 100$000. A partir de 65 anos, idade em que todos deveriam estar livres, Prado propunha arbitramento do valor. A depreciação obedeceria ao seguinte fator emancipatório: 2% no primeiro ano, 3% no segundo, 4% no terceiro, 5% no quarto, 6% do quinto ao oitavo ano; 7% no nono ano; 8% no décimo, 9% no décimo-primeiro, 10% no décimo-segundo, 12% no décimo-terceiro e 16% no décimo quarto. A escravatura terminaria dois anos antes, mas os proprietários ganhariam bem mais até que isso virasse notícia.

A Lei Saraiva-Cotegipe foi apelidada de “monstro”. Um monstrengo gerado pelo cruzamento entre liberais e conservadores com dominância conservadora. Duque Estrada tirou uma conclusão que impressiona pela precocidade ou revela a ingenuidade dos que idealizam o passado ou demonizam o tempo em que vivem: os partidos do Império “traficavam com seus programas, invertendo-lhes os dogmas, só por amor ao poder. Tudo se negociava. Tudo se vendia.

Se a Lei Saraiva-Cotegipe foi monstruosa, o decreto que a regulamentou, datado de 12 de junho de 1886, assinado por Antônio Prado, recebeu o apodo de “regulamento negro”. O decreto nº 9.602 estabelecia que a transferência de província libertava o escravo, salvo nos casos previstos em lei, mas “para efeito do parágrafo anterior o munícipio neutro faz parte do Rio de Janeiro”. Um golpe de mestre em favor do tráfico interprovincial e dos amigos cafeicultores do Rio de Janeiro. Outro golpe era fixar a redução anual do preço do escravo a partir da data da nova matrícula e não a da vigência da lei: “§ 3º O valor do escravo será o resultante do fixado na nova matricula, abatidas a porcentagem ou porcentagens do ano ou anos decorridos desde a data da nova matricula até a da libertação”. Por fim, um petardo na direção dos seus inimigos incendiários do abolicionismo: “ Art. 15. Incorre no crime do art. 260 do Código Penal aquele: a) que receber em casa, estabelecimento, serviço ou obra, ou ocultar escravo alheio, sabendo que o é, se dentro de 15 dias depois de recebido não manifestar ao Juiz de Paz do distrito ou Inspetor de quarteirão; b) que conservar na casa, estabelecimento, serviço ou obra, ou ocultar escravo, depois de conhecer a sua condição, e não o manifestar no prazo legal, contado da nova ciência. Parágrafo único. Aquele que receber escravo maltratado por castigos exagerados ou foragido por temor de ameaças graves, deverá apresentá-lo, no prazo mais breve possível, à autoridade mais próxima, para proceder como for de direito”. Era mais um regulamento da mordaça.

 

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