Os limites da tolerância explicados aos intolerantes

Os limites da tolerância explicados aos intolerantes

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A tolerância não pode ser irrestrita. Ela tem um limite: a intolerância. A tolerância não pode servir para acobertar a intolerância.

Há um jogo retórico no ar: a tolerância teria de ser total, abarcando inclusive a intolerância, para não ser intolerante.

Falso. Erro lógico. Limite da própria linguagem. Tem muita gente confundindo respeito à diferença com respeito ao preconceito.

É uma confusão astuciosa da parte de alguns e ingênua da parte de outros. Um argumento de má-fé ou de pobreza intelectual.

O preconceito não é uma diferença válida, legítima, defensável. Regras internas de qualquer clube não podem se sobrepor às leis e muito menos à Constituição. E não podem, obviamente, basear-se no preconceito como se fosse uma diferença respeitável.

Não podemos ter um clube que, por suas regras internas e valores, rejeite negros, judeus, muçulmanos, etc.

Por que não podemos? Porque contraria a lei e baseia-se em preconceito, em discriminação. Não pode.

Não faz muito tempo, clubes rejeitavam negros e achavam normal.

Essa etapa está vencida.

Não podemos ter nenhuma instituição privada que, por regras internas ou valores tradicionais, rejeite negros ou judeus. Podemos rejeitar grupos ou pessoas que defendem, por exemplo, a pedofilia, pois isso está regulamentado como crime e é socialmente reconhecido como tal. Quem não consegue entender algo tão simples e evidente?

Por que se poderia rejeitar homossexuais?

A legislação brasileira permite o casamento homoafetivo. Nenhum clube privado pode rejeitá-lo.

Nenhum juiz poderia organizar um casamento coletivo impedindo a participação de gays para não melindrar grupos preconceituosos pelo fato de um desses grupos ter emprestado um local para a realização de um evento.

Estamos vivendo os últimos combates contra o racismo e contra  a homofobia.

Os racistas e os homofóbicos esbravejam e buscam derradeiros e falaciosos argumentos para defender o indefensável. O argumento mais em voga, puramente retórico e logicamente defeituoso, é que eles também teriam direito à diferença, sendo que a diferença em questão tem outro nome, preconceito, o direito de rejeitar homossexuais em seus redutos, o direito de restringir a lei em relação aos homossexuais nos seus domínios, o direito de discriminar homossexuais negando-lhes o casamento numa cerimônia coletiva organizada pelo poder público, o direito de limitar a lei em se tratando de homossexuais.

Não há qualquer provocação em aceitar que homossexuais se casem num CTG como parte de um casamento coletivo. Provocação seria descartar os casais homoafetivos para não melindrar os preconceitos de certos grupos.

Só senso comum rasteiro, infestado de preconceito, pode pensar o contrário. É a sensatez preconceituosa.

O que está acontecendo com os homossexuais hoje é exatamente o que aconteceu com os negros e judeus ontem.

Tem muita gente precisando estudar lógica e relações sociais. Se a tolerância tiver de incluir também a intolerância, tiver de ser tolerante com a intolerância, ela não será mais tolerância, será intolerância. Será o tudo vale. Os limites sociais são definidos pelas sociedades. O limite da tolerância nas sociedades democráticas é o começo da discriminação.

Ninguém tem direito à discriminação.

Quando digo que ninguém tem direito a não gostar de negros, judeus ou homossexuais, digo que ninguém tem direito a aspirar que esse gosto, infelizmente sentido intimamente por muitos, seja socialmente legitimado.

Os talibãs de Santana do Livramento praticaram a intolerância por palavras e gestos e pediram tolerância para seus atos tentando ludibriar os incautos com um discurso de respeito à subjetividade de cada um. Parte da mídia condenou o incêndio do CTG, mas relativizou o que não pode mais ser relativizado. Há muito tempo que a mídia gaúcha relativiza o racismo nos estádios de futebol e a homofobia de parte do tradicionalismo.  A juíza de Livramento foi ameaçada de morte. O CTG foi queimado. Atearam fogo na casa da torcedora do Grêmio que praticou injúria racial. O Rio Grande do Sul está atolado no fundamentalismo, no extremismo, no sectarismo e em atos típicos de sociedades discriminatórias. Triste é ver tanta gente racionalizando, justificando, encobrindo, seja por clubismo, seja por conservadorismo, com argumentos infantis:

– Todo mundo faz. Por que só falam de nós?

– E os outros?

– Não foi por mal.

– Eles têm o direito de não gostar de homossexuais.

– São os valores deles.

Não. Falacioso. O preconceito não tem direito de arena, não é uma diferença que possa pedir respeito.

O argumento mais bobo e falsamente lógico é o que se apresenta assim:

– Se não aceitas que eles não gostem de homossexuais e não queiram conviver com eles, estás sendo intolerante também.

Falso. Está-se apenas combatendo o preconceito.

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