Para onde vai a França?

Para onde vai a França?

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Ebulição francesa

“Capital” é uma revista francesa de economia. Para a esquerda ela tem um viés claramente neoliberal. Para a direita é apenas uma publicação neutra, pragmática e responsável. Na sua última edição, apresenta um especial sobre aposentadoria: “Vai mudar tudo. Como se adaptar conforme a sua idade”. O mote é o tradicional “como está não dá para continuar”. A publicação aproveita também para chutar o fígado do politicamente correto, que encara como uma nova “polícia do pensamento”. Mas o prato principal é uma pesquisa de opinião sobre os temas mais sensíveis do momento para a dolorida sociedade francesa.

Por que dolorida? A França é rica e poderosa, mas sofre com sua história e com seus fantasmas. Tem um compromisso multissecular com as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. Não se contenta em ser apenas um país desenvolvido. Quer conjugar mercado e república, compromisso social e livre-iniciativa, regulação estatal e incentivo aos empreendimentos privados, tolerância e regras próprias para o convívio social, integração e aceitação das diferenças, pluralismo e identidade, individualidade e senso coletivo, lucratividade e distribuição. Com tantos imperativos categóricos, atmosféricos, históricos, sociológicos e filosóficos, com temporadas anuais de greves, que jamais deixam de queimar alguns carros, nada é tranquilo, ainda mais numa cidade pulsante e frenética como Paris, geograficamente dividida pelo Sena em margem esquerda e direita.

“Capital” apresenta 12 questões frontais e incômodas para as quais tem nas entrelinhas a sua própria resposta: 1) É normal que os ferroviários se aposentem mais cedo do que os demais trabalhadores? Para 63%, não. Os condutores de trem aposentam-se na França aos 50 anos e oito meses. Emmanuel Macron quer aprovar um regime único de aposentadoria para os setores privados e públicos sem muitas exceções. 2) Devem ser fechadas as lojas e hotéis não acessíveis aos portadores de deficiências? Para 63% dos entrevistados, não. Comentário da revista: “Praticamente dois franceses em três estimam que se deve deixar em paz os comerciantes que não conseguem receber adequadamente os cadeirantes, uma posição bastante politicamente incorreta”.

Tem mais: 3) Os serviços públicos devem usar uma linguagem inclusiva (pronomes neutros e declinação de funções por gênero)? A maioria não soube responder. Mas 38% foram contra. A revista ficou um pouco decepcionada. 4) A limitação de velocidade a 80 km/h é útil? Para 71%, não. Na Suécia, em certas estradas, o limite é de 70 km/h. Na Alemanha, 100. 5) A economia francesa é capaz de absorver uma nova onda de imigrantes? Para 72%, não. 6) Aceitaria pagar mais caro pela passagem de trem para subsidiar as pequenas linhas? 54% são contra. 7) Os funcionários públicos devem voltar a trabalhar 39 horas semanais em vez de 35? 48% entendem que sim, 39% que não. O restante hesita. 8) Os clientes de prostitutas devem ser penalizados? Para 47%, não. Para 33%, sim. França, Irlanda, Suécia, Noruega, Finlândia, Reino Unido, Lituânia e Luxemburgo punem os clientes da prostituição. Polêmica.

Sempre mais polêmica. Faz parte de uma sociedade acostumada ao conflito e aos debates duros: 9) A polícia deve invadir universidades ocupadas por estudantes? Para 50%, sim. Estudantes ocuparam várias universidades francesas em 2018 em protesto contra a lei que fixou seleção para entrar no ensino superior. 10) Atestados médicos no trabalho devem ser mais controlados? Para 77%, sim. 11) O uniforme escolar deve voltar a ser usado? Para 54%, sim. 12) Casais abonados devem receber reembolso menor por despesas médicas? Para 51%, sim.

A França está em ebulição como sempre. O Estado do Bem-Estar Social enfrenta os dogmas do liberalismo da União Europeia. O debate gira em torno do par tradicional: direitos adquiridos versus privilégios corporativos. A expectativa de vida é de quase 83 anos de idade. A idade mínima para aposentadoria é de 62 anos. Para ter o benefício integral é preciso trabalhar até os 67 anos. Hoje, a perda salarial do aposentado em relação aos ativos anda em torno de no máximo 30%. O que mostra a pesquisa da revista “Capital”? Um país mais conservador, cada vez mais inclinado à xenofobia, contraditório, disposto a regular comportamentos individuais como o uso do corpo e pressionado a precarizar condições de trabalho e de aposentadoria em nome da performance econômica e das regras ou dogmas do mercado.

O editorial de “Capital”, em pretenso tom humorístico, diz tudo: “’Quanto mais eu conheço os homens, mais amo os cães. Quanto mais conheço as mulheres, menos...’ Vamos poupá-los da continuação (...) por medo da brigada dos censores”. Todo o problema estaria aí. A economia bloqueada por interesses de corporações; o pensamento cercado por novos moralistas fanáticos; a linguagem controlada por fiscais da correção e supostamente da ética; o capital limitado nos seus arroubos criadores por regras impostas por grupos organizados de pressão; a longevidade atrapalhando as estatísticas financeiras e a saúde do Estado e das empresas; a falta de gosto pelo risco, que o capital detesta, condicionando os espíritos e emperrando os ganhos. Eis um ponto de vista. Felizmente as bancas francesas oferecem outros.

 

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