Parabéns para mim hoje

Parabéns para mim hoje

58 anos vividos com intensidade

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Águas da infância

 

      Hoje, completo 58 anos de idade. Um guri. Ainda me faltam sete anos para a aposentadoria. Sem atingir o teto do INSS. Pedi aos meus familiares um presente especial de aniversário: um banho nas águas da minha infância: no arroio que separa Palomas e Florentina, em Santana do Livramento, e na lagoa situada nos campos que um dia foram de meu avô, onde passei algumas das minhas melhores férias. Os franceses têm expressão para tudo. Falam na importância de “se ressourcer”: ir à fonte para se renovar, rejuvenescer, buscar novas energias, recomeçar.

      Fizemos o passeio. Voltei rejuvenescido. Fomos em dez. Na frente, Dico, meu tio, que, cinquenta anos atrás, quando corríamos naqueles campos, víamos como um adulto, mas era pouco mais do que um adolescente. Passávamos as tardes pedindo que nos levasse para a lagoa, o que só era feito quando o sol declinava. Voltamos, portanto, no tempo. Dico não ia ao lugar onde passou tantos anos da sua juventude havia mais de vinte anos. O tempo muda os lugares. Árvores tombam, aguadas desaparecem, trilhas somem, a mata se fecha, taperas povoam o que antes era cheio de risos, de plantações, de alegrias e esperanças.

      Na lagoa, passamos o bastão ao Bruninho, neto do Dico, que ficou encarregado de cultivar a nossa tradição de voltar àquelas águas com cheiro de infância. Em seguida, fomos ao arroio, num lugar que era chamado de picada, passagem mais estreita para o outro lado. A clareira por onde passávamos a cavalo fechou-se. A memória do Dico encontrou o caminho. Há 42 anos eu não voltava ali. Tudo me pareceu igual, intacto: o leito raso, no verão, ás águas límpidas e geladinhas, onde deitávamos, como fizemos de novo, na areia fina com o azul do céu por cobertura e as árvores nativas soberanas na verde altivez luxuriante.

      Tenho andado pelo mundo e me banhado em lindas praias, mas as águas da picada e da lagoa da minha infância me lavam das tristezas e renovam minhas forças. Para mim, são as mais suaves, as mais puras, as mais doces. Com o passar dos anos, fui ficando mais contido. Banho de mar não é a minha praia. Entro em lugares como Carneiros ou São Miguel dos Milagres, naquelas piscinas naturais. De ondas, fujo. Sal não me encanta. Sou da campanha. Nas águas do meu passado, salto como um menino. Cláudia fica espantada. De repente, sou criança de novo.

      Não jogo em loteria. Aposto em algo mais improvável: vender dois milhões de livros. Com o dinheiro, cumpriria a promessa que um dia fiz ao meu avô Túlio: comprar aquele campo, que foi o da sua vida. Ergueria uma casa, repovoando a tapera, passaria ali uma semana por ano acordando cedo para sentir o perfume dos campos me penetrar a alma. Tomaria banho na lagoa ou na picada ao entardecer. Colheria os risos do passado. Aposentado, ficaria alguns meses para escrever um novo livro. Como se diz, eu saí dali. Aquelas águas nunca sairão de mim. Foi um dos melhores presentes de aniversário que ganhei em quase seis décadas. A emoção é forte. A gente ri e conta histórias. A fonte renova sonhos.


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