Passagens do nosso tempo

Passagens do nosso tempo

De que brincamos na vida?

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 Facundo Manes é argentino. Neurocientista.

Ivan Izquierdo também é argentino e neurocientista. Será que existe uma propensão argentina para a neurociência? Segundo Manes, “um cérebro doente limita muito mais a vida de uma pessoa do que qualquer outra patologia, até mesmo câncer”. Já ouvi uma pessoa dizer que preferia ter qualquer doença, até câncer, menos depressão. Manes faz belas frases como esta em entrevista ao jornal O Globo: “É importante que as crianças tenham tempo para entediar-se e sonhar”. O tédio leva ao sonho assim como o ócio abre caminho à criação?

      Como se entediar nesta era dos celulares, dos aplicativos e dos games? Outro dia, na Semana Santa, eu estava com saudades de soltar pandorga em Palomas. Cláudia, de brincadeira, ralhou comigo. Disse que eu não era mais criança e que me comportasse como adulto. Respondi que serei eternamente criança. Ela observou jocosamente que seria muito esquisito se sentisse saudades de brincar de boneca. Faz sentido. Por que me parece legítima a nostalgia de soltar pandorga e infantil uma vontade de brincar de carrinho? Talvez porque adultos também soltassem pandorgas. Não sei.

      Há tanta coisa que confunde a mente, este pobre cérebro complexo e sofrido.

Um leitor provocou: “A Notre-Dame, onde não houve mortos nem feridos, causa mais reação e obtém mais ajuda espontânea do que Moçambique”. Outro, fisgado, respondeu: “É uma obra de arte milenar”. Veio o terceiro com uma lógica de baioneta: “Uma obra de arte, mesmo a mais bela, pode valer mais do que a vida de uma pessoa? Por que bilionários não socorreram os africanos vitimados pela fúria da natureza e soterrados pelas desigualdades sociais?”

Que bichos bizarros somos nós, os humanos.

      De que eu brinco quando estou entediado? De ouvir música, ver filmes e ler. Estava muito entediado. Comecei a ler “Kzar Alexander, o louco de Pelotas”, do gaúcho, radicado em Brasília, Lourenço Cazarré, e esqueci o tédio. São contos unidos como se fossem um romance. Conto feito romance, romance é. Tem a história de um homem, um pequeno burocrata que se entediava numa repartição pública. Um dia, colocou ponto de exclamação numa resposta protocolar a um cidadão reclamante. Era o segundo passo de uma vida literária. Qual foi o primeiro? Não conto.

Não dou mais spoiler.

De Pessoa a Ninguém – Brinco de pensar em contradições e em paradoxos. Brinco de responder a perguntas básicas cujas respostas me esquecerei rapidamente, pois minha memória só se lembra de palavras-chaves, de hashtag, jamais de conteúdos: qual dos heterônimos de Fernando Pessoa era médico? Qual era engenheiro? Qual escreveu Tabacaria? Qual só tinha o ensino fundamental? Quantos obras o poeta publicou em vida? Uma ou quatro?

      Brinco de escrever sempre o mesmo romance. É a minha obsessão literária. O mesmo nunca é o mesmo quando se trata de um projeto estético, salvo na mente redutora e maledicente do crítico rápido no gatilho e lento na recepção da bala que ricocheteia. O mesmo como procedimento artístico é uma variação, uma improvisação no jazz. Walter Benjamin, o marxista menos marxista que já existiu, o místico, o artista, o leitor de Charles Baudelaire, o flâneur, escreveu: “O labirinto é o caminho certo para aquele que sempre chega a tempo à sua meta. Essa meta é o mercado”.

      Eu me persigno diante dos monumentos da vida urbana. O flâneur, esse passeador e sonhador solitário, lembra-se de passagem de Gisele Bündchen desfilando de biquíni com estampas de Che Guevara. O cérebro é uma máquina orgânica que armazena o que bem lhe convém.

Brinco de ler e reler Michel Houellebecq, o melhor escritor do mundo atualmente, aquele que não cabe nos parâmetros ultrapassados dos modernistas, dos moralistas e dos utopistas.

O resto é poesia na galeria.

 

Da janela olho o verde do parque

Estou sozinho entre os livros

Vendo as novas pedras crescerem

A ave que passa diante de mim

Tem a cor metálica da solidão.

Examino os olhos dos edifícios

São frestas límpidas e tristes

Que piscam para deuses pálidos

Enquanto os servos trabalham.

Sou o homem totalmente novo

O super-homem saído do povo

Máquina reluzente sem falha

Que todo dia devora a maçã.

Estou sozinho nesta sala

Contemplando a multidão

Sou a antena na montanha

Captando as vozes dos reféns.

Em mim, o pássaro de bronze.

 


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