Pode votar, mas não pode ganhar

Pode votar, mas não pode ganhar

O absurdo regimento da Câmara de Vereadores de Porto Alegre

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Pós-hermenêutica

 

      Vivemos um tempo estranho: ou há hermenêutica demais ou de menos. Em alguns casos, lê-se lebre onde está escrito literalmente gato. Em outros, por falta de interpretação, não se vê que por trás do gato há de fato uma lebre. A Câmera de Vereadores de Porto Alegre, se bem entendi, inventou uma nova categoria: o gato-lebre ou a lebre-gato. É assim: certas matérias, como o IPTU, podem ser votadas com 19 vereadores presentes. Mas só ganhará quem tiver 23 votos favoráveis. Uau! Como pode ser? Que matemática é essa? Segundo o regimento, a aprovação não ocorrerá com “diferença de votos menor ou igual a três em relação ao quórum”. Só ganha quem tiver no mínimo quatro votos de vantagem. Se 19, de 36 vereadores, comparecem, vale repetir, pode-se votar. Como precisa vencer por mais de três votos de vantagem, deduz-se que 11 a 8 não pode. Nem 10 a 9. Parece elementar. Não é mesmo?

A oposição entende outra coisa. Vamos a um caso concreto: na votação do IPTU, proposta pelo executivo, compareceram os 36 vereadores. Deu 22 a 14. Vitória incontestável? A oposição quer renovação da votação. Alega que a diferença de três votos não foi cumprida. Como? Deu oito de diferença. O procurador-geral da casa deu parecer dizendo que a oposição tem ou pode ter razão. A leitura feita é que o regimento exige mais de três votos de diferença em relação ao quórum de 19. Ou seja, 23 (19 +4). Hermeneutas, acudam! Fica assim: pode votar com 19, mas só pode ganhar com 23. Se der 19 a 0, não ganhou. Se der 22 a 0, tampouco, pois de 22 para 19 só há três de diferença. Por essa lógica, então, o quórum não é de 19, mas de 23. Por que se pode votar com 19 se nenhum resultado obtido será validado, salvo se não houver reclamação? Até agora ninguém explicou.

      Alguém poderá dizer que assim a política perde a credibilidade. Em nome dos fins, impedir o aumento do IPTU, que eu também gostaria de evitar, mas não dessa forma, usa-se um meio esdrúxulo. Um abuso de interpretação singular caracterizado pela falta de interpretação. O regimento está falando obviamente de votações feitas dentro do quórum e não acima dele. O recurso não poderia ser aceito por atentado à lógica. Perdedores deveriam ter pudor de recorrer a esse tipo de subterfúgio. No caso, até ex-aliados do prefeito tiram uma casquinha e botam lenha na fogueira. Todas as armas são consideradas boas.  O regimento da Câmara de Vereadores de Porto Alegre comete quatro atentados: contra a lógica, contra a matemática, contra o português e, segundo o jurista Lenio Streck, até contra a Constituição.

      Mais dois: contra a hermenêutica e contra o bom senso. A presidência da casa deveria acabar com a festa com uma declaração curta e grossa: “Isso não faz sentido”. Se pode votar com determinado número de vereadores, por exemplo, 19, tem de existir algum resultado capaz de garantir uma vitória incontestável. Mas nem 19 a 0 está ao abrigo. Inventamos uma nova jabuticaba. Uma frutinha só nossa. Era mais fácil fixar 23 como o número de votos necessário à aprovação de certas matérias, que seria também o quórum exigido. Ou não entendi!?

 


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