Posição e função: uma falsa distinção?

Posição e função: uma falsa distinção?

O esquema “pero no mucho” de Eduardo Coudet



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Eu me repito por não ser capaz de reinventar o mundo.

Aprendi lendo o antropólogo Claude Lévi-Strauss que tudo é bom para pensar. Pensa-se filosoficamente a partir de qualquer fragmento do cotidiano. O futebol dá excelentes pretextos para reflexões.

Ainda mais quando se tem comentaristas estupendos como Nando Gross, Carlos Guimarães, Cristiano Oliveira e Hiltor Mombach.

Falo deles por admiração, não pelos comentários a seguir, que são gerais. Em realidade, um embate com os neotáticos, que eles não são.

O grande comentarista, como eles, alia visão técnica e humanismo.

Concilia planejamento, previsibilidade e percepção do acaso no jogo.

Tostão mistura Nelson Rodrigues e Falcão no mesmo olhar preciso.

Falta ao neotático PVC a visão complexa de um Edgar Morin.

PVC e os neotáticos só veem a prosa do jogo.

Desconhecem a poesia do acaso e a força do imprevisível.

Eduardo Coudet, novo treinador do Inter, escalou quatro volantes no Chile. Ressurgiu a discussão sobre posição e função.

Pode ser uma falsa distinção. Salvo se for uma distinção quântica onda-partícula. Ser isto e aquilo, não isto ou aquilo.

Wittgenstein dizia que a comunicação é possível por darmos previamente um sentido comum compartilhável às palavras.

Posição e função são a mesma coisa em momentos distintos.

Se digo, o treinador escalou um volante como meia, digo que volante, no caso, é posição, e meia, função.

Se digo que o técnico escalou um meia como volante, meia é posição; volante, função.

Conclusão: função é quando um jogador está fora da sua posição.

Seria possível dizer simplesmente que o treinador usou um volante na posição de meia. Ou um meia na posição de volante.

Função surge logicamente como uma improvisação.

Obviamente que Coudet não escalou quatro volantes como volantes.

Não haveria talvez nem espaço para isso no campo.

Escalou volante como meia.

Por que não escalou atacantes como meias?

Por que não escalou laterais como meias?

Por que não escalou meias como meias?

Por que espera que um volante lhe dê mais como meia do que um meia?

O que espera conseguir com suas improvisações?

O que o volante tem que o meia não tem?

A posição de um jogador não é uma escolha. É uma descoberta.

A posição do jogador decorre das suas características.

Um campeão do desarme sabe também articular?

O articulador sabe também desarmar?

Pode o soprano cumprir a função de tenor?

Os neotáticos têm uma posição fetiche: o volante.

Esperam do volante que ele desarme, crie e faça gol.

Um gênio consegue.

Gênios são raros.

Pratiquemos um pouco de essencialismo: o volante carrega a sua “volanticidade” aonde for. Um volante de meia ainda é um volante.

Qual a essência do volante? A marcação.

Existem volantes extraordinários que superam sua essência?

Sim, os gênios.

Cansados do volante tosco, que só desarmava, os neotáticos inventaram o volante romântico, total, perfeito, box-to-box. Uma miragem.

Futebol permite pensar paradoxos.

Coudet é retranqueiro por jogar com quatro volantes?

Sim e não.

Ele joga com linhas mais adiantadas. Logo, é mais ofensivo.

Mas joga com quatro volantes. Logo, quer reforço na proteção.

Na verdade, Coudet quer resolver o enigma da quadratura do círculo: um esquema ofensivo com defensores. Ofensivo, pero no mucho.

Atacar com defensores é uma estratégia que faz pensar no dono do jornal em “A montanha dos sete abutres”, o famoso filme com Kirk Douglas, o homem que por cauteloso usava cinto e suspensório ao mesmo tempo.

O esquema “pero no mucho” de Coudet, atacar com defensores, é cinto e suspensório para segurar calções. Uma retranca dissimulada.

A retranca ofensiva.

Posição e função é um retorno à querela entre nominalistas, realistas e conceitualistas. Deturpando: dar nomes diferentes às coisas faz delas coisas diferentes ou apenas encobre as suas semelhanças?

Coudet mal chegou ao Inter. Precisa de tempo.

Talvez já mude para esta terça-feira.

Mas, como disse um ouvinte da Rádio Guaíba, não basta chamar formiga de abelha para que ela produza mel. Um volante não vira meia por jogar dois passos à frente da sua posição de origem. É questão de DNA.

O “entendido” acha que sabe mais por ver as linhas adiantadas de Coudet e por crer conceitualmente que a função supera a posição.

Não vê os quatro volantes arrastando correntes nos pés.

O neotático desconhece a força do acaso e do imprevisto.

É positivista, pré-quântico.

Acredita numa concepção de ciência pré-Popper.

Ainda acha que a ciência produz certezas definitivas.

Confunde crença com ciência.

Achava, por exemplo, que o VAR acabaria com os defeitos da interpretação. O humano no jogo, com suas falhas, é o que o incomoda.

Para ele, o treinador não é um homem, mas um computador que calcula todas as possibilidades, planeja todos os lances e vence por ciência.

Enquanto isso, com a sua ironia expressa em cara de paisagem, a natureza pergunta: pode o tenor fazer a função de contralto?

Todo aquele que diz que o outro não sabe, num espaço de acompanhamento comum e paixão, passa recibo de ignorância e de autoritarismo.

A diversidade de perspectivas atropela o cientificismo astrológico.

Nietzsche ri no seu túmulo.

Isso tudo me delicia.

Enquanto isso, noutro campo, o mundo acaba com um gemido.

Nossa terra devastada, desolada, não surpreende mais.

Nem quando mandam tirar Machado de Assis das escolas.

Desculpem, foi só um engano, um excesso de zelo burocrático.

 


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