Profundezas do eu

Profundezas do eu

O ser à flor da pele

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    Não sei. Profundo é aquilo que não digo, aquilo que calo, aquilo que não quero e não posso dizer, aquilo que silencio ao custo da insônia e das crises de ansiedade. Não falo de segredos abissais nem de monstruosidades, mas das raivas contidas, dos rancores justificados, das mágoas salpicadas no chão como folhas de outono. Quem não as tem? Ao longo do longo caminho aprendi a engolir em seco, a amordaçar a cólera, a domar fantasmas e a contar com a frieza do tempo para congelar o que, no fundo, nem tão fundo assim, nunca se esquece ou perdoa, algo como ser o pássaro abatido no ponto mais alto e delicioso do voo, pois o pássaro, embora não conte, canta, quando pousa, as suas alegrias da viagem.
    Há dias em que amarro a tristeza num poste e saio a caminhar pela “cintura cósmica” levando apenas minha inocência. Não, não sou mais triste do que qualquer outro na minha condição, a de um homem com amor, família, amigos, emprego, projetos e sonhos. Simplesmente não suporto as injustiças, os ardis, as artimanhas, os pequenos golpes cotidianos tramados na calada das tardes. Lamento os abraços que não dei, as frases que não escrevi, os agradecimentos que não fiz, as críticas que não ousei, as respostas que não dei por medo de ferir enquanto era ferido de morte. Não mando recados, não falo em código, apenas exprimo aquilo que se esconde sob a superfície do meu sorriso, dessa suavidade que sei, sim, me caracteriza, ainda que vez ou outra eu derrame lava até chorar.
    Não tenho inimigo a quem não possa perdoar, não por virtude deles ou minha, mas por esta minha incapacidade de odiar para sempre. Sei, porém, que gratuitamente eles nunca me perdoarão por eu ter, em algum momento, sido melhor do que eles. Entre os meus maiores defeitos está essa impossibilidade de levar a sério, ao extremo da seriedade, aquilo que é apenas jogo para quem não joga. Sorrir, nem digo rir, daquilo que o outro acha sagrado, embora descartável sob muitos aspectos, faz inimigos para sempre. Acordo no meio da noite, penso na minha rua, da qual ainda ando tão distante, e faço o inventário das vezes em que caí, fui derrubado, levantei, segui, olhei para trás e vi meu epitáfio sendo escrito com giz. Então eu viro de lado e sonho com banho de rio.
    Há um poema dentro de mim que nunca para de correr por entre matas e jardins, fio de água cristalina no escuro da imaginação e da psique, um poema em busca da sua expressão em frases simples e permanentes. Esse poema me renova a cada dia e me faz acreditar novamente na felicidade e nas pessoas. Ele é como a luz da manhã inundando meu refúgio. Nesse flagrante de cada dia, alguns segundos de deslumbramento, tudo recomeça. Quando falo em poema, um já se põe em alerta: “A poesia é complicada”. Todos somos poetas na solidão dos pensamentos, onde não há juízes nem departamento de marketing. Profundo é aquilo que cala em mim pelas exigências da vida, aquilo que só o coração diz para os que sabem ouvir.  Profundo é aquilo que conto para amigos imaginários enquanto ardo.

*

Um lamento pela morte de Ricardo Fonini, 45 anos, editor de livros, dono da Pradense, com quem fiz uma reedição de A noite dos cabarés. Era gente muito boa. Partiu muito cedo.

 


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