Saudades de lugares

Saudades de lugares

Porto Alegre me faz falta

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      Com o passar dos anos, fui me tornando mais recluso. Minha rotina consistia em ir diariamente à Rádio Guaíba e à PUCRS. No caminho, de ônibus, táxi ou aplicativo, encontrava o mundo. Nos sábados à noite, ia ao cinema, quase sempre no Guion, na Cidade Baixa. Aos domingos, almoçava no Barranco. Vez ou outra, passava no Cantante, bar de gente bacana, na Fernandes Vieira, ou na velha e boa Lancheria do Parque, na Osvaldo Aranha, onde virei, quando tinha 20 anos, algumas das noites mais felizes e agitadas da minha vida. O Adilar, garçom e caixa da “Lanchera”, é testemunha daquele tempo de boemia.

      Nas minhas poucas saídas, podia ir ao Gambrinus, no Mercado Público, ou ao Copacabana comer uma boa massa. Esse era o meu universo. Também me acontecia de ir ao teatro São Pedro, ao auditório Araújo Vianna, ao teatro do Bourbon Country e ao Sesi. Nesses lugares, para alimentar o corpo ou a alma, costumava encontrar as mesmas pessoas, uma tribo da cultura e de moderados prazeres da mesa. Se me dissessem que passaria meses sem botar meus pés em qualquer um desses pontos clássicos da cidade, eu certamente reagiria com espanto:

– Só doente ou morto!

      Nunca me ocorreria que esses lugares pudessem ficar meses fechados. A Lancheria do Parque baixou a cortina de metal em abril. Quando reabrirá? Consolo-me pensando que setembro trará a primavera e também a possibilidade de almoçar à sombra das árvores do Barranco, um prazer que me mobiliza. O problema é que a dúvida me cutuca: será? Estou há quatro meses em home office. Afora as janelas do nosso apartamento, vejo o mundo pelas telas do computador e do celular. Caminho a cada dia do quarto para a sala, desta para o escritório, banheiro, sala, quarto. Paro diante da televisão e acompanho a contagem dos mortos. Participo de lives e de reuniões pelo zoom.

      Inventei outra rotina para esta interminável quarentena. Falo mais com os amigos e com a família, todos transformados em imagens dependentes das oscilações do sinal da internet. Somos todos virtuais. Trancado em casa, sinto saudades desses lugares que me pareciam tão acessíveis e dos quais nunca imaginava me manter distante. Podemos encomendar uma picanha do Barranco, mas faltam as árvores, os amigos da casa, os conhecidos, os encontros casuais, as conversas, o sol. Sinto falta do estúdio Cristal, da Rádio Guaíba, onde Taline e eu apresentávamos o Esfera Pública e recebíamos convidados com gente colada nos grandes vidros para ver e ouvir entrevistas e debates.

      Pela primeira vez, em 28 anos, não fomos à França. Tudo bem. Não se morre disso. Mas não ir mais ao São Pedro, ao Araújo, ao Bourbon, ao Guion, ao Mercado Público, à Famecos, à Guaíba, à Lancheria...! Como suportar essa longa abstinência? Passar mais de 120 dias sem subir num ônibus, sem ouvir flauta de um passageiro, sem ver as esquinas esquisitas e as meninas bonitas da cidade, que pesadelo. Olho pela janela as ruas do meu bairro e sussurro: que saudades daqueles dias e noites de programas de rotina. Éramos felizes e sabíamos disso.


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