Segunda-feira, 14 de maio de 1888

Segunda-feira, 14 de maio de 1888

Como acorda um país depois de abolir a escravidão

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A riqueza do Brasil foi construída pelo braço escravo. Para sempre, os brancos serão devedores dos negros trazidos da África como mercadorias, raptados e violentados. A acumulação primitiva do capital das classes dominantes brasileiras foi produto da barbárie legalizada. Jamais se pagará a devida indenização aos descendentes desses heróis anônimos expatriados, subjugados, espoliados, humilhados, parasitados e abusados. Seria o caso, no entanto, de exigi-la. Por que não? Qual é o tempo de prescrição para o mais hediondo crime contra a humanidade praticado em permanência e de modo continuado por mais de três séculos? Negros foram mantidos sequestrados em cativeiros públicos e familiares sob a proteção de leis de conveniência feitas pelos interessados. Essa mancha é indelével, como são as marcas da infâmia racionalizadas pelos vencedores inescrupulosos. Como atenuante, só se encontra o espírito da época.

A escravidão moderna, começada por obra e graça dos portugueses e dos espanhóis, justi cada como retaliação a atos dos mouros contra inimigos ibéricos, teria consciência permanente da sua ilegitimidade. Os ideólogos do escravismo trabalhariam duro para tentar limpá-lo, legitimá-lo e valorizá-lo. Grotescas categorias, como a de resgaste, seriam inventadas e propagadas em nome da fé, da razão, da cultura, do bem contra o mal e da civilização. Os brancos bons – racionais, civilizados e cristãos – agiriam pela recuperação dos seus irmãos aprisionados e também em benefício da África e dos selvagens africanos necessitados de salvação e de proteção contra os seus.

O tempo passa e as manchetes se apagam ou perdem nitidez. Tudo se torna uma espécie de névoa sem especificações e escolhas. Qualquer um sabe, ou imagina, no entanto, que o século XIX está muito próximo, especialmente quando se trata do conceito entre capital e trabalho. Os jornais de 1888 eram muito diferentes dos que chegam às casas dos brasileiros, em papel ou em edições eletrônicas, mais de um século depois? Como se manifestavam os articulistas? O que defendiam as linhas editoriais? É comum que se veja o século XIX como um tempo dominado por jornais político-partidários, veículos de causas, abolicionistas, republicanos, instrumentos de luta ideológica. Será muito diferente hoje? O que diziam os homens engajados no processo abolicionista? O que argumentavam os defensores da escravidão? Como foram os últimos embates, os derradeiros combates, as estratégias nais, os golpes regimentais, as tentativas de ganhar tempo?

A narrativa histórica varia com o tempo, que faz os homens que o fazem. Contar é investigar, recolher dados, dialogar com documentos, selecionar, editar, hierarquizar e atribuir sentido ao que já se foi, ao que se tornou ausente, pretérito. Houve a época das descrições épicas domi- nadas por personalidades individuais poderosas e avassaladoras. Houve o tempo das narrativas positivistas, centradas em pretensos números frios e verdades incontestáveis. Houve o período da dominação das estruturas, quase sem espaço para os indivíduos com suas escolhas, projetos, idiossincrasias e visões de mundo. Houve o momento do cotidiano, da história social, das mentalidades, dos pequenos acontecimentos, das margens e dos atores anônimos.

Já se sonhou com uma narrativa histórica tão “científica” quanto uma análise de laboratório. Já se postulou uma narrativa histórica tão ficcional quanto um romance. Já se fez de tudo para separar história e jornalismo. Nada, porém, pode barrar o surgimento ou o retorno de hipóteses: e se a narrativa histórica for, acima de tudo, uma grande reportagem? E se o historiador for um jornalista investigando o passado? E se o historiador for um jornalista liberado para usar as mais variadas fontes, inclusive os livros e os teóricos, tendo, como qualquer jornalista, de desconfiar dessas fontes e cruzá-las com muitas outras conforme o assunto for mais controvertido?

E se o narrador da história for um jornalista na contramão dos princípios espetaculares de leveza, facilidade, rapidez e interesse local?

Lê-se o passado em toda sorte de vestígios, de vitrais a manuscritos e impressos. Jornais são marcas consagradas desses passados que batem à porta do presente, desses presentes futuros que jamais param de se atualizar e só esperam o toque mágico que os trará de volta. O jornalista, na pressa da sua labuta diária e por força dos clichês da profissão, costuma acreditar que sua obra perece no dia seguinte à sua publicação. Não percebe, muitas vezes, que se torna objeto de arquivo no mesmo dia em que perde atualidade. Os jornais do passando continuam, no silêncio dos arquivos, a gritar “extra, extra” e a iluminar, na obscuridade das encadernações, aquilo que, com a passagem de anos, se torna imprescindível compreender.

Para compreender o noticiário de um dia paradigmático como o 14 de maio de 1888, referente ao histórico domingo 13 de maio de 1888, será preciso adotar um mecanismo de flashback. O leitor do século XXI está cada vez mais acostumado a essa leitura hipertextual, que, por meio de links, o joga para todos os lados em busca de complementação para o que está sendo capturado no plano imediato pelo olho preso ao texto, que se dá a ver como um sumário comentado, articulado e aprofundado a cada salto para trás. É preciso fazer falar amplamente as vozes que se apagaram, assim como certas vozes que pouco foram ouvidas. Um dia nas manchetes de jornal nunca é apenas um dia na sua limitação do calendário. É sempre uma sequência, uma sucessão de fatos, datas, relações e interpretações.

O mês de maio de 1888 sacudiu o Brasil de sul a norte. Colocou o país nas manchetes mundiais. Um oceano de telegramas inundou as redações dos grandes veículos internacionais, dando conta dos seis dias que abalaram a escravidão no gigante da América do Sul, o último a enterrar a infâmia do parasitismo escravista justificado por razões econômicas, os “interesses da lavoura”, e reforçado, no imaginário de muitos, por teorias que se pretendiam científicas. Um furacão varreu o Brasil entre 8 e 13 de maio de 1888. Não chegou de repente. Era previsível. Não estava, porém, fixado num calendário imutável e conhecido de todos. A cada ano, os ventos sopravam mais forte. A imprensa brasileira viveu dias de euforia e de grandes notícias.


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O Brasil, neste 13 de maio de 2019, continua racista e sem saldar sua dívida com os negros.

 

 


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