Ser escritor em 2019

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Pode um branco escrever sobre negros?

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Meu livro “Acordei negro” conta a história de um homem branco que desperta negro. Perguntam-me se um homem branco tem direito de escrever um livro assim. A mesma pergunta, colocada de outra forma, é: pode um branco colocar-se no lugar de um negro? São excelentes questões. Acredito em empatia. Cada um, em princípio, pode tentar colocar-se em lugar de qualquer outro. Um romancista é um criador de personagens. O homem Machado de Assis gerou Capitu, personagem feminina muito verdadeira e complexa. Balzac criou homens, mulheres, brancos, negros. Concebeu Serafitus. Ele e Minna se amam.  Minna vê no amado um homem. Mas Wilfrid, que também ama Serafitus, vê nele uma mulher, Serafita. Guimarães Rosa criou a ambígua e viva Diadorim.

      Jorge Amado concebeu uma profusão de negros e brancos. Josué Montello, que nem foi um extraordinário escritor, produziu um grande personagem negro, Damião, em “Tambores de São Luís”. A questão agora talvez seja outra: por que brancos ainda escrevem sobre negros? Para tentar tomar-lhes o protagonismo? Seria odioso e inútil. Eu sonho com um tempo em que nos veremos simplesmente como humanos. Hoje, quando o racismo ainda faz estragos, eu me vejo como um modesto companheiro de lutas dos negros, a quem ofereço a minha pequena colaboração de historiador e romancista, fiel aos meus afetos de infância e à minha convicção adulta de que a escravidão e a contribuição do negro para a cultura brasileira são os elementos definidores da nossa história.

      Um personagem negro criado por um branco pode ser verdadeiro? Pode ser que sim, pode ser que não. Vai depender da competência do escritor. Romancistas trabalham observando o mundo da vida e usando a imaginação. Criam e recriam. O leitor é o único juiz. A escritora negra Toni Morrison, prêmio Nobel da literatura de 1993, tem uma galeria de personagens femininas fantásticas. Num dos seus primeiros contos, a personagem é uma menina negra que sonha em ter olhos azuis. Daí surgiria o seu primeiro e essencial livro, “O olho mais azul”. Sonho – Quando eu era criança, sonhava ser negro. Meus amigos eram negros. Inteligentes, espertos, ágeis, jogavam muito mais bola do que eu, tinham ritmo e afinação quando brincávamos de concurso de música, conheciam os pequenos segredos do cotidiano. Sabiam se virar, eram corajosos e firmes. Tudo eu aprendia com eles. Eu ainda não sabia o que era o racismo. Não percebia que na enorme pobreza deles, muito maior do que a nossa, havia mais do que a falta de sorte. Claro que existem branco afinados e bons de bola assim como negros desafinados e pernas-de-pau no futebol. Menino, eu me ocupava do meu mundo real.

      Acredito quase ingenuamente na transcendência da arte. O escritor é um artista. Deve ser capaz de ir além de si mesmo. Precisa ser branco, negro, homem, mulher, heterossexual, transexual, gay, crente, descrente, terreno, extraterrestre, tudo. Quatro palavrinhas impõem-se: sinceridade, veracidade, verossimilhança e autenticidade. Juntas, na ficção, elas podem levar a uma velha palavra: verdade. Flaubert escreveu: “Madame Bovary sou eu”. Escrever é ser muitos.

Métodos – Escritores de ficção trabalham predominantemente com a intuição, a observação, a imaginação e o condensado de experiências existenciais. Tudo é inspiração. A liberdade criativa pode servir para libertar e libertar-se. Um texto fantástico é o de Neusa Santos, “Tornar-se negro”, no qual a autora explica como a cor foi transformada em sistema de hierarquia social com posições marcadas. Djamila Ribeiro, em “Pequeno manual antirracista”, cita uma frase devastadora de Joice Berth: “Não me descobri negra, fui acusada de sê-lo”. Outra citação feita por Djamila, de Grada Kilomba, complementa: “O racismo é uma problemática branca”. Eis o ponto incontronável.

      Djamila Ribeiro pergunta: “O que você está fazendo ativamente para combater o racismo?” Eu me questiono. Meu romance é minha minúscula contribuição para o combate ao racismo. Cada branco precisa aprender a combater ativamente o preconceito. É ainda Djamila Ribeiro que destaca: “O projeto Amazônia Negra, da fotógrafa Marcela Bonfim, busca reconhecer e valorizar as culturas negras em Rondônia”. Negra, Marcela faz uma observação prospectiva: “A maioria dos negros brasileiros precisa aprender a ser negro no percurso de suas vidas”.

      Não serão, porém, os brancos que darão lições de negritude. Brancos precisam, no percurso das suas vidas, aprender a deixar de ser brancos. Quando mais nos tornemos outros, mais poderemos ser humanos, diversos, plurais, universais. Romances não dão lições. Nem mensagens. Eu mesmo não sei se meu personagem se tornou ou se descobriu negro. Depois da terceira página, ele assumiu o controle da narrativa. Eu o acompanhei de língua de fora, espantado, inquieto, assustado, querendo saber o fim. Ser escritor é andar à beira do abismo com pés no chão.
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Na foto, e eu meus editores Luiz Maurício Azevedo (Figura de Linguagem) e Luis Gomes (Sulina).

 


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