Ser negro

Ser negro

Flagrantes do racismo no cotidiano

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      Eu tinha 16 anos, ideias curtas e cabelos muito compridos. Vi uma mulher mudar de calçada quando se deparou com um jovem negro em sentido contrário ao dela. Era um rapaz vestido exatamente como eu: jeans e camisa colorida de mangas curtas. Eu vinha desgrenhado. Ele, não. Vi um lampejo de aborrecimento nos seus olhos. Quis me colocar no lugar dele para sentir o que sentiu. Sei hoje que a empatia faz milagres. Mesmo assim, percebi que não poderia experimentar a mesma dor que ele, essa dor que sepultou orgulhosamente ao ver que eu havia notado o que acontecera. Muitas vezes, quis ser negro na vida. A primeira, há 50 anos, quando jogava bola na infância com meus amigos negros e não queria ser diferente. Outra vez foi quando me apaixonei pela Elaine. Não esqueço da sua beleza. Tão linda quanto a Maju. Os mesmos cabelos. Uma boneca. Ela era mais velha. Não me deu bola.

      Negros podem sofrer com a invisibilidade. Essa é categoria cruel. É o que pode ser em “O homem invisível” (1952), de Ralph Ellison. Há, porém, a visibilidade negativa. Esse olhar preconceituoso de medo que a mulher, magra e alta, lançou ao homem com quem ia cruzar. Curitiba elegeu a sua primeira vereadora negra. Pessoas mudam de calçada quando veem um negro. Pela primeira vez temos quatro negras na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Em 2020. Naquele fim de tarde da minha adolescência, quis muito ser negro. Quis ser por aquele cara que eu não conhecia, por uma vergonha que me invadiu, por não entender plenamente o que se passava. Anos depois, em Porto Alegre, eu veria com frequência cenas semelhantes. Estudante de cursinho, morando no Sarandi, comia um Xis na Borges de Medeiros e matava o tempo nos bancos da Praça da Alfândega para a aula da tarde. Quando um colega negro me fazia companhia era certo: a polícia nos pedia documentos.

      Na doce boemia estudantil das noites do Bom Fim tomei muito “atraque” (revistas policiais) quando saía dos bares – onde discutíamos de Nietzsche a Jean Genet ou tramávamos a revolução, de cujos métodos eu discordava por ser libertário – sempre que meu parceiro de festa era negro. Nesta semana da Consciência Negra me veio à memória o dia em que barraram o Leandro num baile. Era um negro alto e forte. Eu nunca o tinha visto antes. Usava calça boca de sino azul e camisa branca aberta no peito. Era moda. O porteiro foi direto:

– Tu, não.

– Por que não?

– Negrão aqui não entra.

      O bate-boca começou. Um guri da minha idade, com meu jeito, ficou desconcertado. Cutucava o amigo e dizia quase chorando:

– Vamos embora, Leandro, não tem jeito.

      Leandro encarou, discutiu, tudo em vão. Chegava gente. Ninguém saía em sua defesa. Alguns ficavam aborrecidos com a demora na entrada. Um homem baixo e atarracado abriu caminho até a porta:

– Não te enxerga, crioulo?

      Depois de um instante de pasmo, Leandro disse com altivez:

– Vão ouvir falar de mim. Vou ser prefeito desta cidade.

– Vai te deitar, lasqueado – debochou o mesmo homem.

      Soube agora que Leandro é médico. Não quer ser político. Pena.

No seu consultório, uma gravura com o rosto possível de Zumbi.


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