Ser poeta

Ser poeta

Projeto anacrônico em tempos sombrios

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      Ele queria ser poeta. Tinha 13 anos de idade, muitas espinhas e uma convicção: a poesia era o seu destino. Trabalhava num armazém, onde lhe cabia anotar as encomendas diárias de um grupo de clientes, e estudava num colégio público. Quando lhe convidavam para jogar bola, não se interessava muito pelo assunto, ainda mais que sempre acabava no gol. Preferia ficar lendo poesia em velhos livros pegos na biblioteca. A paixão pela poesia, especialmente a de Manuel Bandeira, rendia-lhe muita chateação. Um grupo dizia que poesia era coisa de gay. Outro, que era maluquice. As meninas ficavam em dúvida. Resultado, vivia sozinho.

      Um dia, teve uma conversa com um colega mais velho, João Artur, de 17 anos. Era um guri cabeludo e alto, considerado o gênio do colégio. Sabia tudo de matemática e pretendia ser engenheiro do exército. A conversa aconteceu no pátio da escola durante o intervalo.

– Já viu um poeta? – perguntou João Artur com certo desdém.

– Já li muitos poetas – respondeu Luiz Rufino.

– Não é a mesma coisa.

– O que vale é a poesia, não o poeta.

– Quero ver você dizer isso depois de ver um poeta de verdade.

– O que pode ter de mais num poeta?

– O jeito de andar e de falar.

      Luiz Rufino sentiu o baque. Nunca tinha encontrado um poeta e não podia imaginar que existisse uma maneira de andar ou de falar específica dos poetas. Falar, vá lá, mas andar. Resolveu reagir:

– Poeta é gente. Anda como todo mundo.

– Não anda, não.

– Quantos poetas você conhece?

– Dois.

– E eles andam da mesma maneira?

– Igualzinho.

– De que jeito?

– De lado.

      João Artur imitou o andar dos poetas. Era algo como um passo de tango ou, quem sabe, a preparação de um canhoto para cobrar uma falta no futebol. Luiz Rufino assustou-se um pouco. Tentou não demonstrar. Sentia que era mais um golpe que lhe aplicavam os bárbaros. Era assim que chamava os seus agressores cotidianos. Só não tinha como provar. Buscou um argumento que não pudesse ser rebatido por um gênio da matemática com pendores patrióticos em tempos de ditadura militar:

– Manuel Bandeira não anda assim.

– Como é que você sabe?

– Eu sei.

– Sabe nada.

      O poeta adolescente recuou. Não sabia como era o andar de Manuel Bandeira. João Artur foi ao ataque. Desafiou-o a conhecer os poetas.

– Onde?

– No Bar do Parque.

– Eles vão lá?

– Não sabia? Você não sabe nada de poetas. Poeta vai todos os dias, na mesma hora, ao mesmo bar e bebe a mesma coisa: cachaça com bitter.

      Luiz Rufino conhecia os senhores que bebiam todas as tardes cachaça com bitter no balcão do armazém onde trabalhava. Eles falavam palavras estranhas como “cenáculo” e “egrégio colega”. Será que faziam poesia e não contavam ou contavam e ninguém dava bola? Eles, porém, não andavam de lado, salvo quando se excediam nos aperitivos. O tempo custou a passar até a hora do encontro no Bar do Parque. O jeito foi ler Bandeira e Drummond para não pensar muito no assunto. De onde lhe vinha essa paixão esquisita pela poesia? Havia começado na aula com um professor recitando “essa nega Fulô”, do Jorge de Lima. Na biblioteca, numa tarde de tédio, resolvera mexer nos livros de poesia. Ficou extasiado. Havia poetas que falavam da vida de todos os dias, com palavras usadas por todo mundo, podia ser divertido e apaixonante.

– Vou ser poeta – disse para si mesmo.

      Saiu dali poeta. Só lhe faltava escrever um poema. Tinha a vida pela frente. Prometeu-se escrever um grande poema em cinco anos. Passou, contudo, a falar de poesia na escola e a andar com livros de poesia para todo lado. A pegação de pé foi imediata. O deboche corria solto, mas, de vez em quando, os mesmos que zombavam pediam-lhe em segredo uns versinhos para tentar conquistar uma colega. Ofereciam dinheiro, proteção contra os mais chatos e violentos, lugar na linha no time de futebol e cola nas provas de química e física. Nunca rolou. A poesia era sagrada e não podia servir para um comércio tão baixo.

      Foi pensando nisso que chegou ao Bar do Parque. Os poetas estavam lá. Eram dois senhores simpáticos que apareciam raramente no armazém. Falavam “lira”, “bardo” e andavam estranhamente de lado. Sabiam de cor a poesia de Manuel Bandeira e Drummond. João Artur deu, enfim, o bote:

– Quer ser assim?

– É o meu destino. O andar talvez não seja o mesmo.


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