Silêncio, Round 6

Silêncio, Round 6

Ficções duramente realistas

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Eu ouço os amigos. Logo depois do apagão da turma do Facebook, Leandro Minozzo me falou de “O silêncio”, de Don DeLillo, e da série da Netflix “Round 6”. Luís Gomes me mandou o seu exemplar do livro. Fazia tempo que eu não lia o autor de “Zero K”, escritor multipremiado com troféus do tipo National Bool Award e Library of Congress Prize. “O silêncio” trata de um apagão tecnológico em 2022. O escritor deve ter comemorado sua capacidade de antecipação ao ver o rolo do outro dia. O texto, ágil e contundente, não passa de um conto que a editoração espichou para dar um livro. Tem aquela técnica de tornar tudo estranho: “Num cruzamento importante, o guarda de trânsito digital estava imobilizado, um braço um pouco levantado”. Parece algo terrível.

Don DeLillo faz o cotidiano, como assistir a uma partida de futebol americano até a interrupção pelo apagão tecnológico, virar algo esquisito. A vida normal apresentada de certa maneira ganha um tom anormal. Quando não há mais sinal de telefone e internet, entra-se numa estranheza absoluta. O que fazer da vida? O que fazer do tempo? “A cadeia da cozinha, a cadeira de balanço, a poltrona, uma cadeira sem braços, uma cadeira dobrável”. Tudo escuro, nada funciona, nem elevador, nem sinal de trânsito, nem metrô. Tudo parado. “Uma inteligência artificial que trai quem nós somos e como vivemos e pensamos”.

Batatinha frita 1, 2, 3

Tentei resistir à série coreana “Round 6”. Dispenso excesso de violência. Por dever profissional, fui olhar. Antes, li que muitos pais e escolas estão em alerta contra os efeitos da história na cabeça das crianças. O pau está pegando. O seriado mostra pessoas endividadas atraídas para um jogo cujo primeiro round começa assim: uma boneca gigante diz “batatinha frita 1, 2, 2”. Enquanto ela está falando os competidores devem avançar em direção à linha de chegada. Quando ela para de falar, cada um deve ficar imobilizado. É o famoso Mandrake. Quem se mexe, é executado. Parece atroz. Vi crianças jogarem esses games conhecidos e elas estão habituadas a execuções em massa. A eliminação quase sempre consiste na explosão do derrotado. Para elas, jogo é isso.

Ou é só um jogo. Para nós adultos faz pensar em violência real. Dá vontade de vomitar. A trama é criativa e ardilosa: tem violência aos borbotões, aspecto de jogo infantil, um colorido exuberante, clima tecnológico de ponta e, por trás, capitalismo versus comunismo. No primeiro, pessoas abandonadas, cada um por si, até para não ter os pés amputados por causa de diabetes é preciso ter grana. No outro, todo mundo vigiado, uniformizado e com metas a cumprir sob pena de execução. Ou seria apenas outra face do neoliberalismo: ganhar ou morrer?

Pode ser isso ou apenas um jogo. É a série mais vista da história da Netflix no mundo. Um coice no estômago que não permite desligar. Entre o pior e o terrível, o indivíduo navega até estrebuchar na areia sem praia. Batatinha frita, 1, 2, 3, estava aqui, não está mais, morreu na contramão tentando alcançar o outro lado do Rio Grande ou escapar do pequeno agiota que cobrava muito mais do que havia emprestado. “Round 6” é simplesmente o perfil patológico de uma sociedade estúpida.

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A fusão da noite com o dia, do escuro com a luz na tela plana vazia. Brincadeira infantil que transtorna. Algo aconteceu. Mas o quê? Talvez o fato de que ultrapassamos o verossímil e já estamos em outro lugar enquanto a velha guarda louva os seus ídolos de sempre e ainda ri de piadas que repicam como bengalas no chão da pátria. Na lógica dos games eliminação significa execução. O corpo do perdedor precisa ser destruído. O mundo não deixa mais de ser um Fortnite generalizado. Esse, porém, é o grau zero da violência e do imaginário da extinção do outro.

O apagão final já aconteceu. Não há retorno para a luz do sol. Dois mundos se enfrentam: o nostálgico não diz nada além de, o que é bom eu fiz, o que eu fiz o bom. Já o moderno, último estágio da ideologia do progresso redentor, não diz nada além, toda ressalva será castigada como rabugice velhusca. O discurso publicitário rotula de azedume toda crítica contra a sua doçura pragmática. O mobiliário olha a casa com desconfiança. Por que essa materialidade constrangedora? Por que essa paradoxal imobilidade? O mundo passa por mutação. Nunca se leu tanto artigo de jornal como agora. Lê-se, contudo, em novos dispositivos, com outra disposição, enquanto uns fazem profecias e outros comemoram.

O criador de “Round 6”, Hwang Dong-hyuk, em entrevista para o Brasil, declarou: “Não estou em nenhuma rede social, então nem pensei na possibilidade de crianças assistirem por essas mídias. Essa obra não é para elas. Estou perplexo que crianças estejam vendo. Espero que os pais e os professores ao redor do mundo sejam prudentes para que elas não sejam expostas a esse tipo de conteúdo — diz o diretor. — Mas, se já viram, espero que os adultos as ajudem a entender o significado do que está por trás da tela. Torço para que haja boas conversas”. Por enquanto, as crianças estão ensinando aos adultos que é só um jogo. Alguns adultos sussurram: o jogo da vida em dois formatos cruéis.


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